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A democracia que morre nas areias de Gaza (Por Manuel Carvalho)

O que se passa hoje só nos autoriza a certeza de que Israel tornou-se um Estado terrorista

atualizado

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Organização Mundial de Saúde (OMS)
Equipe médica no norte de Gaza - Metrópoles
1 de 1 Equipe médica no norte de Gaza - Metrópoles - Foto: Organização Mundial de Saúde (OMS)

Já se disse muito, mas ainda há mais a dizer sobre os crimes que Israel está a cometer na Faixa de Gaza contra a população civil palestina. Houve um começo em que fazia sentido esticar os limites da ética para acolher a represália sobre um território até há pouco controlado pelos terroristas do Hamas. Houve um momento de dúvida. Tudo isso se esgotou. A discussão sobre o lugar da lucidez e do ódio, as dúvidas sobre a legitimidade e a barbárie, a condescendência para os exageros e os abusos inerentes à guerra deixaram de fazer sentido. O que se passa hoje nas areias de Gaza só nos autoriza a mesma certeza que tivemos em Srebrenica, em Bucha ou nos horrores de qualquer limpeza étnica, no Ruanda ou na Birmânia: Israel tornou-se um Estado terrorista que ameaça a paz mundial, os direitos humanos e os valores da democracia.

Em momentos assim, sentiu-se sempre no Ocidente a comoção que pressiona os governos democráticos a impor limites aos bárbaros. Fosse através de embargos, de confiscos, de sanções ou até de intervenções militares, a Europa e os Estados Unidos foram sendo capazes de agir em nome da humanidade para travar a loucura de autocratas ou senhores da guerra. Desta vez, nada disso acontece. As democracias liberais do Ocidente abdicaram de exibir sem reservas a sua indignação pela forma como a elite corrupta e extremista que governa Israel está a massacrar inocentes. Tornaram-se por isso cúmplices. Agentes legitimadores da matança. Deixando de lutar pelos seus valores, aceitaram ficar ao lado dos que os violam todos os dias. Este espaço de opinião é por regra dedicado a temas nacionais, mas há momentos em que o que se passa lá fora é tão nacional, ou nosso, como a escolha do nosso governo. Acontece na Faixa de Gaza.

Meses a fio de invasão e de violações da lei humanitária internacional começaram a causar nas pessoas aquele clima de rotina dissolvente em que tudo se acomoda e tudo se relativiza. Uma espécie de anestesia cívica foi tomando conta de todos. A comparação entre Israel e o Hamas, uma democracia e um hediondo grupo terrorista, foi servindo como pretexto para a complacência inicial. Com excepção de comunidades estudantis um pouco por todo o mundo livre e de franjas da esquerda radical sempre prontas para agredir a Europa ou os Estados Unidos, começou-se a aceitar a barbárie como um novo normal. Como se o estatuto histórico de vítimas que cabe ao povo judeu lhe desse crédito ilimitado para matar inocentes. Como se não fosse evidente aos olhos de todos que Israel está cada vez mais próximo do Hamas, se não na forma, ao menos na substância.

Até que notícias como a desta semana, de mais um bombardeamento na zona de refugiados em Rafah, nos obrigam a um gesto inadiável de indignação e protesto. Israel é hoje um foco infeccioso não apenas para o Médio Oriente, como também para a Europa e para o mundo. Na gangue que manda em Telavive já não há políticos eleitos num quadro democrático, mas usurpadores minados pelo ódio da extrema-direita e pela necessidade de sobreviverem a qualquer custo. Deixá-los incólumes na sua tarefa de destruir um povo não é dar a mão à única democracia que sobrevive no pântano do Médio Oriente, a que os elegeu. Nem é possível ficar ao lado dos israelitas que todos os dias se manifestam em defesa de um cessar-fogo e exigem eleições. É, pelo contrário, apoiar uma clique sanguinária que ofende o direito de Israel existir, o direito dos palestinianos a viver e o apego dos europeus às causas da paz e da Justiça.

Condenar Israel sem reservas nem medo de ser acusado de anti-semitismo é bem mais do que expressar empatia pelo sofrimento dos palestinos de Gaza e repulsa pela frieza e meticulosidade com que um exército altamente profissional destrói as suas aspirações e vidas. É também uma forma de exigir que as potências ocidentais ponham de lado o cinismo. A União Europeia e os Estados Unidos que se apressaram, e bem, em isolar a Rússia pela violação da soberania da Ucrânia deviam ter a mesma atitude para com Israel. E não se trata de comparar o que se passa num lado e no outro. Trata-se apenas de notar que em matéria de direitos humanos ou do respeito pela lei internacional não pode haver dois pesos e duas medidas. Censurar os tribunais internacionais que condenaram as violações, como tantos líderes das democracias fizeram, é de alguma forma implicar os cidadãos que representam na legitimação da violência gratuita. É mentira.

A tese do antigo Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt sobre o ditador Rafael Trujillo (“Ele pode ser um filho da mãe, mas é o nosso filho da mãe”) continua a prevalecer com o embrulho do cinismo e do relativismo moral. Israel mata inocentes todos os dias e Joe Biden limita-se a uns arrufos, a União Europeia a alguns incómodos – e os árabes a resmungos cobardes e cínicos. Já não há mais lugar para a hipocrisia. O que está em causa é fácil de determinar: um regime que se empenha meticulosamente em destruir cidades, estradas, hospitais, afinal, tudo o que é básico para uma sociedade funcionar, só pode ser dominado por facínoras tão desprezíveis como a galeria de ditadores contemporâneos da estirpe de Milosevic, Putin ou Assad.

O Hamas assinou um crime hediondo e por isso merecia a mais exemplar punição. A punição foi feita e deu lugar a um massacre. Já não há uma guerra em curso, apenas uma exibição de poder infame de um exército poderoso sobre uma população deslocada, desprotegida e, até prova em contrário, inofensiva. O máximo que o Hamas consegue fazer nesta fase do conflito é disparar uns rockets condenados a morrer no escudo de protecção de Israel. O que se podia esperar dos terroristas num território transformado em escombros era o que aconteceu em Stalingrado ou em Bagdad: uma guerra de guerrilha. Nada disso. O Hamas é um fantasma que apenas existe como pretexto para legitimar a destruição do que resta de Gaza e da sua população.

Por muito que irritem as palavras de ordem dos que querem uma Palestina até ao mar ou os slogans descaradamente anti-semitas, os protestos dos estudantes acabam por ser o único sinal da razão num combate em que o Ocidente a perde a cada dia. Um reflexo das sociedades livres que não pactuam com a violência de um Estado poderoso sobre inocentes e exigem que a decência e o respeito até pela sua memória histórica regressem a Telavive. Este não é o país que lutou para sobreviver nas guerras dos Seis Dias ou do Yom Kipur a que os países vizinhos o obrigaram. É um país que larga bombas sobre as tendas de plástico onde sobrevivem os refugiados da sua guerra. Depois de Gaza, tornou-se um Estado-pária, desprezível, dominado pelo extremismo radical que merece a mais absoluta condenação e o mais profundo desprezo.

(Transcrito do PÚBLICO)

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