“Lido até hoje com a bulimia”, revela o endócrino Flávio Cadegiani
Um bate-papo sincero com o médico que se tornou conhecido por ser favorável a tratamentos para obesidade envolvendo medicações polêmicas
atualizado
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Há 17 anos, o endocrinologista Flávio Cadegiani frequenta um consultório de terapia. As inúmeras horas sentadas no divã lhe permitiram passar a vida a limpo. Hoje, aos 32 anos, se considera um homem altamente analisado: é franco, direto e não foge a nenhum assunto.
Relembra os traumas da obesidade infantil, abre o verbo sobre os procedimentos estéticos que fez, resgata o difícil relacionamento com os pais, esclarece a sua opinião sobre cirurgia bariátrica. Basta perguntar que ele responde. Não há assunto proibido.
Cadegiani ficou conhecido profissionalmente em Brasília por defender a prescrição de medicamentos para pacientes que precisam emagrecer. Seu nome inclusive foi citado em um boato envolvendo a morte do odontologista Luciano Krebs.
Na área da saúde, a fama lhe traz críticas, mas o rótulo não atrapalha os negócios. Uma consulta com o endocrinologista custa R$ 980 e a agenda do profissional está fechada até o fim do ano. Quem quer ser atendido por ele deve entrar em uma lista de espera.
Por trás do sucesso profissional, entretanto, se encontra um homem, como ele mesmo diz, inseguro. O motivo é sempre o mesmo: o fato de ter sido uma criança obesa. Desde a adolescência convive com anorexia, bulimia e compulsão alimentar. Chegou a perder 25kg em um mês.
Aos oito anos pesava quase 70kg. Sofreu bullying durante todo o período escolar, mas o auge foi em um acampamento do colégio, onde foi espancado por quatro crianças quando voltava para o alojamento.
O especialista não se lembra de ter permanecido com peso estável. Durante a faculdade, teve um pico de 145kg e um diagnóstico de hipertensão. Os melhores amigos intervieram, tiveram uma conversa franca e foi quando ele resolveu mudar drasticamente de vida.
Marcou uma consulta com um endocrinologista e começou a usar medicações. Flávio recorda que quebrou um paradigma, pois era contra o tratamento. Hoje esse remédio está proibido, por ter sido associado a casos de suicídio.
Os pais não foram muito presentes durante sua pré-adolescência. Em meio a escândalos e divórcio, Cadegiani precisou amadurecer mais rápido do que gostaria. Vindo de uma família de advogados – o pai trabalha em escritório privado e a mãe é procuradora federal –, nunca se arrependeu por ter escolhido a medicina.Atualmente com 98kg, 1,84 de altura e 8,5% de gordura, o médico aprendeu a se aceitar e ligar menos para a opinião dos outros. Em um relacionamento há quase dois anos, planeja ter filhos de uma relação coparental. Para isso, escolherá uma mulher com quem se identifique.
Sua infância foi tranquila?
Não. Quando eu era bem novo, meu pai – uma pessoa conhecida na minha cidade, São Bernardo do Campo (SP) – se envolveu em um escândalo. Uma amante dele apareceu embaixo do prédio com uma cueca, buzinando. Na época, isso saiu em jornais. Minha mãe era católica e sofreu muito. Ela acabou encontrando em mim um cúmplice, mesmo eu tendo cinco anos de idade. Desde muito novo carregava um pouco mais de responsabilidade do que deveria. Possivelmente, assim começou o meu ganho de peso.
Você guarda traumas dessa época?
Sofri um pouco de alienação parental consciente, mas não culpo ninguém. Entendi que aquilo era um grito de desespero da minha mãe. Ela chegava às 22h, saía às 6h30, trabalhando como procuradora federal. Ela fez um concurso público justamente para fugir do controle do marido. Meu pai me tratava como pai, mas, quando era conveniente, também lidava comigo como irmão. Tinha um quê de ausência.
Quem cuidava de você, então?
Até os quatro anos fui criado por ela, depois ficava com meus avós ou com a empregada. Chegava a estranhar quando minha mãe estava em casa. Ela estava preocupada com o casamento, com questões pessoais dela e não sobrava tempo para ver o que eu estava passando. Não lembro do meu pai jantar em casa nem uma vez na vida – hoje ele janta.
Como se sentia vivendo sozinho?
Os adultos em volta de mim acreditavam que tudo era frescura, sabe? Porque problema é coisa de gente grande e criança não sofre. Por isso hoje tenho uma visão radicalmente diferente. Não os culpo, entendo o contexto, sei que erraram em vários aspectos, mas não adianta mais. Estou na fase adulta e bola pra frente. Isso foi tudo muito bem trabalhado para estar me expondo desse jeito, obviamente.
Por que sua mãe se mudou para Brasília?
Ela veio transferida para cá quando eu tinha uns 15 anos. Já era procuradora federal em São Paulo e tinha um cargo alto lá. Era estresse demais. Trabalhava entre 12 e 14 horas por dia. Na época da mudança, achei que eu ficaria com meu pai, mas ele não superou bem o término do casamento. Acabei morando sozinho mesmo. Vivi um ano, sem nenhum adulto, em um apartamento de quatro quartos. Tinha motorista, empregada, conforto. Gostava de fazer as coisas de casa, compras. Mas uma psicoterapeuta me sugeriu voltar a morar com minha mãe.
A anorexia teve alguma coisa a ver com isso?
Então, eles praticamente só souberam quando fui internado. Na primeira vez que tive compulsão alimentar, estava viajando com meu pai para Punta Del Este, no Uruguai. Precisaram chamar uma ambulância, porque comi uns 2,5kg de comida, sem exagero. O problema evoluiu para uma bulimia e depois para um transtorno de compulsão periódica. Até hoje tenho tendência à anorexia. Se deixar, fico sem comer.
E como lidou com esses problemas relacionados à alimentação?
Fiz tratamento com psicólogo por um bom tempo. Parei, voltei. Mas perdi peso com medicamento. Nessa época percebi o transtorno de déficit de atenção e uma dose de hiperatividade – o que me fazia ter essa compulsão. Também recebi o diagnóstico de transtorno de ansiedade. Por isso, não conseguia ficar parado. Suspendi o psicólogo há dois meses, por falta de tempo com o doutorado. Vou e volto, mas quero manter. Me ajudou muito e se eu não tivesse feito, estaria bem pior.
Ainda tem algum transtorno alimentar?
Lido até hoje com isso. Não sei sair da dieta e devorar apenas uma fatia de pizza. Muitas vezes saio no sábado para comer um pão de calabresa, uma pizza inteira e ainda duas sobremesas. Já tentei adotar outro método, mas não consigo. Opto por diminuir o número de vezes que faço isso. Aquela coisa de “pode comer de tudo moderadamente” não funciona para todo mundo. Prefiro comer poucas vezes, mas sair bem comigo mesmo, do que ficar me controlando.
Esse método também é aplicado no seu consultório?
A maioria dos pacientes gosta de trabalhar dessa forma e a gente nota que está ajudando muito. É melhor ter a válvula de escape. Aquela coisa totalmente abstrata – “evite isso” – não funciona. O que é “evitar”? Aliás, o que é ser saudável? É ser paranoico? Ou é a proporção que você come bem?
Você gosta de fazer tratamento estético? Já passou por alguma cirurgia?
Depois de perder peso, fiz uma lipo. Tirei seis litros de gordura. Apesar da cirurgia ter sido muito bem feita, sobrou um pouco de pele. Fui fazendo tratamentos para melhorar isso, mas o tecido começou a ficar desproporcional, porque quando você emagrece mais um pouco começam a aparecer as irregularidades. Tive que engordar para caber na ponteira da criolipólise – tratamento que fiz.
A sua experiência interfere na maneira como você atende no consultório?
Quando o paciente perde peso é uma felicidade para mim. Tenho um gosto muito particular quando vejo um adolescente diminuindo o ponteiro da balança e dando a volta por cima. Às vezes chego a me emocionar no consultório. Chorar mesmo. Sofro junto com o paciente obeso. Não deveria, talvez. Mas não consigo. Existe um grau de identificação pessoal muito forte. Não é só papo teórico.
De onde surgiu a sua “fama” no mercado de Brasília?
Foi mais no boca a boca mesmo. Tenho uma tendência de ser mais agressivo no tratamento da obesidade, por isso minha abordagem é muito criticada por alguns colegas. Mas não existe qualquer embasamento nesses julgamentos. E talvez por esse estilo, eu tenha assustado algumas pessoas. O remédio para emagrecer não causa tantos problemas como as pessoas imaginam. Existe uma verdadeira farmacofobia da obesidade e eu não culpo quem tem. Há um estigma muito grande do mau uso dos medicamentos. Usavam-se muitos anorexígenos.
Atualmente o controle dessas medicações é maior?
Hoje existe um protocolo de segurança mais elevado para essas substâncias serem liberadas. Ao ponto de o cuidado com esses remédios ser superior a qualquer outra doença. Mas estamos mostrando que esse tipo de tratamento pode ser eficaz e não tem efeitos colaterais, se for feito de forma consciente e da maneira correta. Não existe nada de errado em você tomar medicamento para emagrecer.
A regulamentação dos remédios está correta ou existe um certo exagero?
Pela dificuldade de controle que se tinha, não acredito que foram exageradas as suspensões. Se fossem muito bem regulamentadas, igual a sibutramina é hoje, não teria tanto problema. Só prescreveria esses medicamentos, como anfetaminas, em casos de pacientes graves e refratários a outros tratamentos.
Todo mundo que entra no seu consultório sai com prescrição?
É muito raro um paciente sair com a receita na primeira consulta. Mas o aspecto mais importante desse assunto não é a indicação do remédio. A medicina sabe ensinar a prescrever, mas não sabe ensinar quando e como retirar. Quando falamos de doença crônica, seja ela depressão ou hipertensão, não se pode parar o medicamento de uma vez. Por que com a obesidade se faz isso? Se retirar tudo abruptamente, o paciente ganha peso de novo. Quando se desmama devagar, a chance dele voltar a engordar é muito mais baixa.
As pessoas escondem que tomam esse tipo de remédio?
Obviamente, existe uma tendência de vangloriar a perda de peso a partir da dieta e atividade física. Tenho pelo menos dois pacientes que já saíram em revistas nacionais, dizendo que o processo aconteceu sem remédio e era mentira. Então, é preciso tomar muito cuidado com a hipocrisia das redes sociais e da mídia. Enquanto a medicação for vilã, a gente vai ver o índice de obesidade crescer. Por isso, dei a cara abertamente para mostrar isso. Conquistei alguns “inimigos”, mas, sinceramente, é tanta falta de argumentos reais… criticar por criticar, questão de ego dentro da medicina.
Então esses remédios são receitados apenas para pacientes obesos?
Ou se ele tiver uma curva ascendente de ganho de peso. Quando o paciente tem chance de atingir a obesidade em menos de cinco anos, não espero ele chegar lá. Se ele for diagnosticado com obesidade de IMC normal, ou seja, se estiver com o peso dentro dos padrões, mas o percentual de gordura estiver muito alto e alguns exames metabólicos mostrarem que ele tem alterações também trato.
A obesidade está sempre ligada a algum problema psicológico?
Entre 40% e 70% dos casos de obesidade são genéticos, então existe a predisposição. Mas raramente você não tem nenhum aspecto emocional ou psicológico por trás. Dificilmente alguém ganha peso por ganhar, fica obeso sem ter um relacionamento conflituoso com a comida ou com a bebida.
Diziam que o mal da humanidade no século 21 era a depressão. Agora especialistas apontam para a ansiedade. Você concorda? Como isso se reflete na alimentação?
O Brasil não é o país mais deprimido do mundo, mas certamente é o mais ansioso. Sem dúvida, a ansiedade está se tornando uma das causas principais da nossa obesidade – além do preço alto dos alimentos saudáveis.
Os pacientes que passam pelo seu consultório viram bitolados por dieta?
Sou realista. Paciente que leva marmita para restaurante, toma alta. Porque a gente não trabalha para deixar ninguém maluco. Esse excesso de foco, principalmente quando se posta em redes sociais, está associado a um perfil patológico. Se for para um restaurante jantar e você não comer, marca outro programa. O que as pessoas chamam de foco, as vezes é paranoia.
Você é contra a bariátrica?
Não. Sou contra a banalização. Às vezes, não há tentativa de tratamento clínico antes. Indico a cirurgia principalmente em paciente muito obeso. Mas sou mais a favor da bariátrica em casos por comprometimento do metabolismo. Ela tende a melhorar riscos de casos cardiovasculares e diabetes, por exemplo. Mas normalmente o procedimento é feito de qualquer jeito. E a gente vê absurdos, como pacientes engordando com o objetivo de cumprir critério de convênio para operar. Isso sim, sou absolutamente contra. Às vezes o problema não é o estômago, mas uma ansiedade não tratada.
Como foi o caso do deputado Romário?
Não posso comentar o caso do Romário. Ele era meu paciente e fui contra o tratamento.
Existe ex-gordo?
Existe ex-gordo fisicamente, mas não de cabeça. Ele pode melhorar substancialmente, mas ficar curado 100%, são poucos os casos. A maioria aprende a lidar e está feliz. E isso não tem nada de errado.
Quando o dentista Luciano Krebs faleceu (ele teve uma parada cardíaca), um boato rodou a cidade dizendo que você receitava HCG ao odontologista. Na época você ameaçou processar quem havia espalhado a história. Houve processo contra alguém?
Na verdade eu só o conhecia de academia, nunca foi meu paciente. Além do mais, o HCG não é praticado na minha clínica. Aqui é expressamente proibido. O caso me deixou extremamente chateado e me fez pensar em parar de atender em Brasília – uma ideia que não apaguei 100%. Fiquei impressionado como fofoca, calúnia e comentários maldosos se espalham. Me assustou muito. As pessoas estavam mais preocupadas em saber por que ele morreu do que respeitar a dor da família.
E seus planos?
Não quero ser só um médico da moda, preciso de mais uns quatro anos para ter certeza de que estou bem fixado. Agora estou focado em terminar meu doutorado e em seguida vou passar uns dois anos focado em atualização, mesmo. Como sou muito inseguro, preciso de mais tempo para isso. Não descartei um dia virar professor de alguma universidade. Quero também rodar o mundo inteiro. Não gosto de fazer nada mais ou menos.
Está namorando? Tem filhos?
Estou em um relacionamento há quase dois anos, mas não tenho filhos ainda. Quero ter uma relação coparental, daqui a uns três, quatro anos. Vou escolher uma mulher de quem eu goste e com quem eu tenha uma relação honesta. Achava que esse estilo de paternidade era loucura da minha cabeça. Mas li uma matéria sobre pessoas que fazem isso. Prefiro mil vezes nascer com pais supostamente separados, mas que compartilham um grau de honestidade, do que viver com a falta de harmonia que cresci. Quando vejo alguém criticando adoção por relação homoafetiva, acho simplesmente absurdo. Primeiro porque a criança foi abandonada por um casal hétero. Mas isso são planos. Parei de me preocupar se as pessoas vão achar errado. O mundo já tem muitas regras pra gente viver.