Conselhos de saúde estão em guerra com o ensino a distância
O CNS é contra a modalidade e defende que o profissional precisa ter contato com o paciente
atualizado
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Em maio de 2017, o presidente Michel Temer publicou o Decreto nº 9.057, que regulamenta o ensino a distância. Conhecida como EAD, a modalidade possibilita a estudantes a chance de cursar o ensino superior de casa, pela internet, com alguns poucos encontros presenciais.
A norma disciplina parte da Lei nº 9.394, de 1996, e, na prática, flexibiliza a oferta e a criação de cursos superiores no país – as instituições devem se credenciar no Ministério da Educação para abrir graduações, mas, a partir disso, as exigências e regras diminuíram bastante, com o intuito de facilitar o acesso à educação.
“O Ensino a Distância, por sua flexibilidade, capacidade de abrangência e suas formas diversificadas de disseminação do conhecimento, tem sido uma modalidade atraente no mundo inteiro, especialmente para aqueles que pleiteiam superar suas dificuldades históricas de acesso ao ensino formal, ou desejam novos estudos frente aos desafios dos tempos atuais”, explica o Ministério da Educação, em nota, ao Metrópoles.
Apesar da justificativa nobre de facilitar o acesso à educação a quem mora longe dos grandes centros ou não possui recursos para arcar com uma faculdade presencial, o Decreto nº 9.057 é recheado de polêmicas, principalmente no que tange aos cursos da área de saúde. As graduações de biomedicina, medicina veterinária, enfermagem, farmácia, fonoaudiologia, fisioterapia, biologia, terapia ocupacional, educação física, nutrição e serviço social estão, oficialmente, no olho do furacão.
Os conselhos federais das profissões e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) seguem em pé de guerra com o ensino a distância. “Somos contrários, pois não tivemos comprovação de que os alunos terão condições de aprendizagem suficientes para garantir assistência à população. No Conselho Federal de Enfermagem, temos certeza de que o indivíduo formado a distância não vai ter qualidade de formação, não vai conseguir passar em um concurso público”, pontua a coordenadora nacional da Operação EaD do Cofen, Dorisdaia Humerez.
A preocupação do Cofen é recorrente: apesar de boa parcela das graduações de saúde a distância ter uma parte presencial, as várias entidades acreditam que, ao distanciar o aluno do paciente, da “beira do leito”, do “olho no olho”, o ensino fica prejudicado. Não seriam desenvolvidos o trabalho em equipe, a relação com o doente e o entendimento de como funciona, na prática, o Sistema Único de Saúde (SUS). “Você colocaria a sua mãe nas mãos de um profissional formado a distância?”, questiona Dorisdaia.
Em 2015, o Conselho Federal de Enfermagem fez uma pesquisa reunindo forças para visitar os 70 polos presenciais de cursos de enfermagem no Brasil (o número está desatualizado e, hoje, já passa de 7.800 localidades). O conselho encontrou lugares que não eram minimamente adequados à formação de um profissional. “Não tinham biblioteca, laboratório, e, muitas vezes, o endereço dava em um fundo de padaria, em um posto de gasolina”, conta a coordenadora. O Cofen se organiza para mais uma varredura em 2019.
“É um processo muito superficial e inseguro”, avalia Douglas Vinícius Reis Pereira, representante da direção executiva nacional dos estudantes de medicina e coordenador adjunto da comissão de recursos humanos do CNS. “O MEC visita a sede do curso, não as unidades. São 690 mil vagas autorizadas para a área da saúde, vivemos em uma luta incansável para sensibilizar a sociedade do risco representado pela EAD. Além de não ser possível adquirir algumas competências a distância, outro questionamento é quem são essas instituições oferecendo as aulas”, diz.
Do outro lado, quem lida com educação a distância há muitos anos acredita ser possível sim ter qualidade no ensino utilizando as diversas ferramentas disponíveis e que, assim como existem faculdades ruins presenciais, há também instituições de ensino inferiores a distância. E falta paciência para entender as novas possibilidades e como elas podem ajudar o aprendizado.
“Toda mudança exige um novo olhar, e até as pessoas ganharem nitidez, ficam inseguras. A nossa história da EAD aconteceu fora do sistema, como uma alternativa que qualificou muita gente. Agora os profissionais estão chegando ao mercado e precisamos olhar para a situação de forma mais investigativa do que negativa”, explica a professora e doutora Rita Tarcia, diretora da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed).
“Evoluímos muito. A gente discutia que o aluno precisava entrar em contato com o professor, mas agora temos aulas de webconferência unindo pessoas de várias regiões em um encontro muito enriquecedor. Quando falamos de EAD, não é substituir o presencial – são situações de aprendizagem diferentes e cada uma tem seu potencial. A qualidade de um projeto pedagógico está em olhar para essas modalidades e potencializar o melhor que elas podem oferecer”, conta Rita. Ela também chama a atenção para um mal-entendido: em nenhum momento a formação de profissionais de saúde acontece 100% a distância.
Para o Ministério da Educação, o Decreto nº 9.057 é essencial para desenvolver uma educação superior que preze pela qualidade, diversidade e inclusão, além de propiciar mecanismos eficientes para atender as metas do Plano Nacional de Educação – principalmente a proposta de levar a taxa bruta a 50% de matrículas na educação superior entre a população de 18 a 24 anos.
“Cabe ao Ministério cumprir a legislação brasileira. A Educação a Distância faz parte da política educacional da Pasta. Nesse contexto, o curso da área de saúde, ofertado na modalidade a distância, terá sempre e obrigatoriamente momentos presenciais garantindo a qualidade da formação do egresso naquelas práticas inerentes ao curso, podendo a instituição se valer de metodologias de educação a distância, por exemplo, para a oferta de conteúdos teóricos ou que já comportem tecnologias de simuladores ou realidade virtual em determinados campos de estudo, mas nunca prescindindo dos momentos presenciais”, diz trecho da nota do MEC.
Os cursos são obrigados a obedecer as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), responsáveis por definir as necessidades de práticas, laboratórios e ambientes profissionais e quais devem ser contemplados nos projetos pedagógicos, bem como o que não pode ser feito a distância. “As DCN dos cursos de saúde são a primeira garantia de que nenhum curso da área de saúde, na modalidade a distância, será ofertado sem obediência a elas”, afirma o MEC. Além disso, está sendo implementada nova regulamentação para a educação superior, com o objetivo de reforçar não só a supervisão mas também penalizar as instituições que disponibilizam cursos de baixa qualidade ou irregulares.
As aulas
Em nota, a Kroton, responsável pelas universidades Anhanguera e Unopar, duas das maiores instituições de ensino a distância do país, explica que os cursos semipresenciais têm as mesmas exigências dos presenciais, com disciplinas práticas, conteúdo e programa de estágio supervisionado, e que os polos são equipados com laboratórios, material de apoio e tecnologia de ponta para auxiliar no aprendizado do aluno.
“Os cursos semipresenciais da área da saúde preparam os alunos para desempenhar funções assistenciais, gerenciais e de pesquisa. O modelo de ensino é dividido entre aulas on-line, teleaulas presenciais e atividades práticas, lecionadas nos próprios laboratórios e salas de aula das faculdades. Os alunos devem comparecer à unidade de ensino de duas a três vezes por semana para realizar as atividades de supervisão, atuação na prática clínica, identificação de necessidades individuais e coletivas de saúde, intervenção, entre outras que se estendem do gerenciamento à pesquisa”, ressalta o pronunciamento.
Para criar os cursos, a Kroton diz levar em consideração a rotina dos alunos e que o modelo a distância é feito para aqueles que precisam de mais agilidade no dia a dia, acompanham as tendências tecnológicas e são disciplinados. Tanto no polo quanto no ambiente on-line, o aluno sempre conta com a ajuda de tutores.
Democratização?
Apesar de o principal argumento para a facilitação dos cursos de EAD ser o de promover o acesso de quem está longe dos grandes centros à educação superior de qualidade, por enquanto, a maioria dos polos presenciais fica nas capitais. “A maior parte está no município de São Paulo. E percebemos que locais distantes, no interior do Amazonas, por exemplo, mal têm acesso à internet ou leitos hospitalares. A lógica não está sendo cumprida nem pelo discurso. Se fosse realmente isso, poderíamos até apoiar”, explica Dorisdaia.
Segundo a Abed, muito dessa má distribuição tem a ver com o fato de que a EAD ainda está se desenvolvendo em território brasileiro. “Já atendemos bem nos grandes centros, agora vamos levar para quem está longe e não consegue desenvolver uma formação por conta da distância”, conta Rita.
Discutir para resolver
Um dos grandes problemas levantados pelos conselhos é a falta de diálogo entre o Ministério da Educação, as faculdades, a Abed e as entidades representativas dos profissionais. O conselheiro Douglas Vinícius Reis Pereira explica que ainda há esperança de frear de vez e extinguir os cursos. “Estamos insistindo muito em criar um diálogo com o MEC, marcamos reuniões, mas eles estão se ausentando da conversa. Recolhemos uma nota pública assinada por 64 entidades interessadas em discutir o assunto. Somos otimistas em relação a uma possível reversão”, conta.
O movimento contra a EAD já chegou à Câmara dos Deputados. Tramita na Casa o Projeto de Lei nº 5414/16, que pretende proibir o incentivo público para cursos a distância na área da saúde. O relator é o deputado Mandetta (DEM-MS).
Para Dorisdaia, o ensino a distância veio para ficar e, apesar de a coordenadora do Cofen não aceitar esse tipo de formação, ela acredita ser preciso fazer um acordo. “O conselho definiria quais matérias podem ser a distância e quais não podem. Queremos garantir que as atividades essenciais, de mais complexidade, sejam dadas presencialmente. Estamos muito preocupados com a saúde da população”, pondera.
Porém, para a diretora da Abed, os conselhos têm a missão de regular e acompanhar a ação do profissional. “A formação fica a cargo da universidade, onde ele é educado pelos seus pares. Não vejo uma necessidade de ação dos conselhos. Mas uma troca, um diálogo, é sempre bem-vindo”, afirma.
A saída do Cofen, no fim das contas, é tentar instituir um exame nacional e obrigatório a recém-formados para praticar a profissão, nos moldes que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) promove.