Tratado sobre pandemias: as normas para combater crises sanitárias
Em artigo, professora explica a discussão da OMS com os países membros para reagir melhor às próximas pandemias
atualizado
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No começo deste mês de junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu a sua 77ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS). Lá, foram tomadas decisões históricas para o enfrentamento de crises de saúde pública como pandemias e epidemias.
A AMS é um fórum decisório que conta com a participação de 194 estados membros e entre suas atribuições está a formulação e supervisão das políticas públicas da OMS. A edição de 2024 foi um momento histórico, pois resultou em um acordo que propôs emendas ao Regulamento Sanitário Internacional e estabeleceu compromissos para a conclusão de um Tratado sobre Pandemias.
O Regulamento Sanitário Internacional (RSI) tem como objetivo a prevenção e controle de emergências de saúde pública com potencial de propagação internacional. Por ser um instrumento de direito internacional, o RSI cria obrigações, como a exigência de relatar eventos de saúde pública e o estabelecimento de critérios para determinar em que situação um evento deve ser considerado uma “emergência de saúde pública de interesse internacional”. Além disso, o RSI exige que os países possuam um ponto focal nacional, a critério de cada jurisdição, que estará em contato com a OMS, entre outras responsabilidades.
A pandemia de Covid-19 demonstrou que muitos países não estavam preparados para crises, ainda que aparentassem possuir meios para enfrentá-las. Exemplos dessas deficiências incluem a falha da China em notificar prontamente a OMS sobre um novo vírus que estava sendo amplamente circulando em Wuhan e os mecanismos fracos que a organização possuía para aplicar suas próprias recomendações e as obrigações RSI. Dessa forma, desde 2022, a OMS buscava uma negociação para revisão do regulamento.
O grupo de trabalho dedicado ao tema pandemia recebeu mais de 300 propostas e o acordo final esclareceu as obrigações quanto aos produtos de saúde que devem ser disponibilizados nessas situações e como fazer uma distribuição mais equitativa. Também foi criado um comitê de conformidade nos países membros, um passo importante visto que a conformidade com o RSI era um dos elementos frágeis até então.
Um dos pontos mais controversos do acordo foi a definição do conceito de pandemia, até então ausente no RSI. Declarar uma pandemia é um tema sensível, uma vez que deve ser feito antes dos países serem afetados, porém em um momento em que os dados ainda podem ser escassos, como explicou o chefe da área de emergências da OMS, Mike Ryan:
“Você poderia argumentar que a poliomielite foi uma pandemia, embora nunca tenha sido declarada como uma pandemia. Você também poderia argumentar que o Mpox foi uma pandemia porque afetou pessoas em todo o mundo, mas afetou um segmento populacional específico em todo o mundo.”
Ao final, ficou estabelecido que a definição de pandemia passa a ser a de uma doença transmissível que tem, ou está em alto risco de ter, ampla disseminação geográfica para e dentro de múltiplos Estados; excede, ou está em alto risco de exceder, a capacidade dos sistemas de saúde de responder nesses Estados; causa, ou está em alto risco de causar, substancial perturbação social e/ou econômica, incluindo perturbação do tráfego e comércio internacional; e requer uma ação internacional rápida, equitativa e coordenada de forma aprimorada, com abordagens de governo e sociedade como um todo.
Já o Tratado sobre Pandemias sobre Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias é um acordo complementar ao RSI para aperfeiçoar a cooperação internacional na resposta a crises de saúde pública. Este tratado ainda está em discussão e é coordenado pelo Órgão Negociador Intergovernamental (INB, na sigla em inglês) e foi criado em 2021 para responder as lacunas do RSI.
Até o momento, foram realizados seis encontros para debater seu conteúdo. Contudo, o grupo tem recebido duras críticas pela falta de uma linguagem mais assertiva ao tratar de temas sensíveis, como o acesso ao conhecimento restrito pelas empresas multinacionais farmacêuticas, que permita países de renda baixa e média produzir medicamentos e vacinas durante as crises de saúde pública. A AMS deliberou que uma decisão será tomada até a próxima assembleia, em 2025.
O Brasil no debate internacional de preparação para pandemias
Há diversos temas sensíveis à capacidade do Brasil em responder a futuras pandemias que estão sendo atualmente negociados no Tratado sobre Pandemias. Aqui, dois pontos merecem destaque:
O acesso a patógenos é um ponto crítico, pois os dados de sequenciamento genético e amostras de agentes patogênicos com potencial pandêmico são essenciais para a pesquisa e desenvolvimento de vacinas e medicamentos. No entanto, existem barreiras legais e políticas que podem dificultar esse acesso.
Esse é um tema que ficou evidente na pandemia de H5N1 (também conhecida como gripe aviária), quando a Indonésia compartilhou suas amostras com a OMS, porém não recebeu doses de vacinas suficientes, que foram desenvolvidas a partir dessas amostras, para proteger sua população.
É necessário, portanto, que o Brasil e outros países em desenvolvimento tenham segurança ao compartilhar seus agentes patógenos com garantia de que receberão vacinas e outros produtos desenvolvidos a partir dessas informações.
Outro ponto sensível para o Brasil são os debates em torno da transferência de conhecimento e tecnologia. A epidemia de Covid-19 evidenciou que poucos países (e empresas) possuem capacidade de produção de vacinas e medicamentos em grande escala. Sendo assim, o compartilhamento voluntário de conhecimento sobre como produzi-los é fundamental para aumentar a capacidade produtiva ainda que haja forte resistência de indústrias farmacêuticas de pesquisa em compartilhar o conhecimento protegido por patente e segredo comercial.
Essas ações são fundamentais para o Brasil, considerando que há no país capacidade de produção e absorção de tecnologia. Foi exatamente o que ocorreu no acordo entre a AstraZeneca e BioManguinhos, que permitiu ao Brasil acelerar o processo de vacinação em um momento de escassez de vacinas.
Esses dois pontos estão interrelacionados e podem garantir a capacidade do Brasil em acessar amostras biológicas para conseguir desenvolver novas tecnologias para enfrentar as crises de saúde pública, bem como possibilitar o acesso ao conhecimento e garantir parcerias que permitam o desenvolvimento em escala de vacinas e medicamentos.
*O artigo foi escrito pela doutora em Política Social e professora Elize Massard da Fonseca, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP), e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
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