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Seth Berkley: “Não adianta existir vacina e ela não chegar às pessoas”

Em passagem pelo Brasil, o cofundador da Covax Facility, Seth Berkley, falou sobre as dificuldades em garantir o acesso à vacinação

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Homem de paletó sentado com mãos em mesa - Metrópoles
1 de 1 Homem de paletó sentado com mãos em mesa - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Um dos maiores desafios do enfrentamento da pandemia da Covid-19 foi garantir a distribuição e acesso igualitário das vacinas. O epidemiologista americano Seth Berkley foi um dos nomes à frente dessa missão, como cofundador do consórcio global Covax Facility, que ajudou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a entregar 2 bilhões de doses do imunizante para 146 países.

De acordo com o consultor de saúde global, tão importante quanto desenvolver uma vacina é garantir que ela seja produzida em larga escala e chegue até as pessoas que precisam dela. Esse pensamento vale para a Covid-19, mas também para a dengue, tuberculose e malária.

“Para a dengue, que é um problema importante no Brasil particularmente agora, existe uma vacina licenciada, mas não há quantidades adequadas para a vacinação. É possível aumentar essa produção? Podemos criar maiores quantidades desse imunizante?”, questiona.

O epidemiologista e ex-CEO da Aliança Global de Vacinas (Gavi) – entidade que administra o centro de compartilhamento de vacinas pela Covax – esteve no Brasil em fevereiro para discutir formas de obter novas vacinas.

Em entrevista ao Metrópoles, Berkley também fala sobre o impacto da criação de impostos para taxar o tabaco, álcool e açúcar como uma estratégia para reduzir os diagnósticos e mortes por doenças crônicas evitáveis, doenças cardíacas e acidente vascular cerebral (AVC).

Leia a íntegra da entrevista com o epidemiologista e cofundador da Covax, Seth Berkley:

Metrópoles: Hoje o Metrópoles entrevista o epidemiologista Seth Berkley. Ele é consultor de saúde global, ex-CEO da Gavi e cofundador da Covax, o consórcio que ajudou a OMS a levar vacinas contra Covid-19 para todo o mundo.

Todos os dias nós publicamos notícias sobre os avanços na fabricação de vacinas para doenças como o câncer ou outras doenças não transmissíveis. Contudo, em um artigo seu publicado no Fórum Econômico Mundial, você defende que a tecnologia por si só não salva vidas até que tenhamos capacidade para produzir e distribuir à população que realmente precisa dela.

O que está faltando? Acha que esse assunto recebe a importância que merece na comunidade científica global? Acredita que esse cenário mudará nos próximos anos?

Seth Berkley: Você faz uma excelente pergunta. É claro que apenas as vacinas ou a ciência não protegem as pessoas: a vacinação, sim, e ter a disponibilidade desses produtos para as pessoas que precisam deles. É por isso que precisamos nos esforçar.

E então o desafio é: quando você tem novas tecnologias, primeiro ter certeza de que elas estão evoluindo o mais rápido possível. Frequentemente não há demanda de mercado por tecnologias para pessoas pobres ou para países em desenvolvimento. E assim, leva muito mais tempo.

Gostaríamos de abreviar isso. Um exemplo: na Covid-19, a primeira vacina estava disponível 327 dias após termos o genoma do vírus. Muitas vacinas levam anos. Mas, uma vez que se tem a compreensão de que a vacina existe e funciona, você também precisa aumentar a fabricação e certificar-se de que é capaz de obtê-la a um preço razoável para que possa ser usada pela população.

Por exemplo, foi um trabalho de 30 anos em uma vacina contra a malária. E essa vacina, você sabe, conseguiu ser registrada. Demorou mais seis ou sete anos de estudos para decidir se e como ela deveria ser usada – o que foi um longo atraso – e, finalmente, a quantidade de vacinas que podem ser fabricadas é muito pequena. Então há escassez da vacina.

O que mudou agora é que existe uma empresa na Índia que está produzindo uma vacina em grande escala e produzirá grandes quantidades a um preço baixo, então ela poderá ser distribuída.

Esse é o desafio que temos com novas vacinas. Então, já que sabemos disso, deveríamos estar planejando fazer as vacinas a um bom preço, em quantidades adequadas, e nos preparar para o uso.

Metrópoles: Em visita ao Brasil, o doutor Tedros Adhanom, da Organização Mundial da Saúde (OMS), sugeriu que o Brasil se tornasse um fornecedor global de vacinas como a da dengue. Como nós poderíamos ajudar outros países a combater a doença sem comprometer a nossa própria necessidade, e como a Gavi trabalha nestas situações?

Seth Berkley: Voltando ao exemplo do que a Índia foi capaz de fazer sobre a vacina contra a malária. A malária não é um problema indiano, mas eles foram capazes de produzi-la a baixo custo e grande quantidade — isso fará a diferença.

Sobre a dengue, que é um problema importante no Brasil particularmente agora, existe uma vacina licenciada, mas não há quantidades adequadas para a vacinação. Então, é possível aumentar essa produção? Podemos criar maiores quantidades dessa vacina?

Mas também existem outras vacinas que estão chegando. O Instituto Butantan está trabalhando em uma vacina diferente, que pode ser em dose única em vez de duas doses. Mas os ensaios clínicos não tiveram infecções suficientes com alguns dos diferentes sorotipos da dengue para obter uma resposta final.

Então, o desafio é acelerar essa pesquisa e ter certeza de que quando você tiver o produto, ele possa ser produzido em grandes quantidades para as necessidades do Brasil, mas também em outros países, se você escolher exportar.

Metrópoles: Você esteve à frente da Gavi durante a pandemia da Covid-19, um período essencial para a vacinação pública. Quais foram os principais desafios para garantir que as vacinas chegassem a todos?

Seth Berkley: Esse foi o momento mais difícil da minha carreira porque sabíamos que existiriam problemas com uma doença que estava afetando os países, e as pessoas entraram em pânico. Queríamos ter certeza de que todos os países tivessem acesso à vacina e, por isso, começamos a nos preparar logo no início.

Muito antes de existir uma vacina, criamos uma organização chamada Covax e arrecadamos dinheiro para seguir em frente e comprar imunizantes. Entregamos a primeira dose para o primeiro país em desenvolvimento 39 dias depois que a primeira vacina no mundo foi entregue no Reino Unido.

E nós tivemos mais 30 dias de atraso porque esperamos pela OMS para aprovar a vacina. Mas entregamos para outros países em desenvolvimento na África e conseguimos enviá-la para 100 países em mais alguns meses.

O desafio era que havia nacionalismo de vacinas, havia política, e houve proibições de exportação. Tivemos que mudar constantemente e fazer ajustes para tentar manter o envio das vacinas fluindo.

No final, entregamos 2 bilhões de doses para 146 países. As taxas de cobertura nos países em desenvolvimento não são tão elevadas como nos países ricos, mas estão bem próximas.

E, claro, eles têm menos idosos e menos pessoas em risco. Então, nos saímos bem com o tempo, mas muitas pessoas estavam com raiva e chateadas porque houve um atraso no acesso e isso é exatamente o que estávamos tentando resolver. Fizemos melhor desta vez do que antes na história. Mas, é claro, da próxima vez queremos fazer melhor.

Como aprendemos essas lições? Porque temos um padrão de pânico e negligência. Agora, estamos entrando na fase de negligência, em que as pessoas estão perdendo o interesse e não estão necessariamente trabalhando para se preparar. É certeza absoluta que existirão mais pandemias, mais surtos. O que precisamos fazer é continuar para tornar o mundo melhor e conseguir lidar com isso.

Metrópoles: O que erramos e o que acertamos durante a pandemia, em relação à vacinação? Você percebe alguma mudança na rede de distribuição após a Covid-19?

Seth Berkley: O que erramos foi que houve uma terrível desinformação. Parte disso eram rumores normais e pessoas divulgando informações, mas também tivemos líderes políticos em todo o mundo espalhando desinformação. Isso é muito perigoso porque se não confiarmos na ciência, nunca chegaremos lá.

O problema é que, em uma pandemia, a ciência também muda. Se você não tem confiança na ciência, escuta um fato, e quando ele muda e muda – porque aprendemos enquanto a situação evolui –, as pessoas usam essa mudança para dizer: “Ah, os cientistas não sabem”. Em uma pandemia você tem que prestar atenção nos melhores cientistas.

Em termos de oferta, pensávamos que haveria a capacidade de 2 bilhões de doses — por isso, esse era o nosso objetivo. Pensamos que tudo poderia ser feito.

Mas, em todo o mundo, fomos realmente capazes de produzir mais de 11 bilhões de doses no primeiro ano. O mundo respondeu muito bem, mas não foi uma distribuição igual e muitas dessas doses foram para países ricos e não aos pobres.

Existe um movimento agora para tentar melhorar a fabricação de vacinas em todo o mundo e em lugares diferentes, para ajudar em caso de outra emergência, para termos mais capacidade.

Mas a última advertência é, claro, que apenas ter uma instalação de fabricação não garante acesso. O Brasil tem a Fiocruz, o Instituto Butantan, mas você também precisa ter transferência de tecnologia, e ter capacidade para fazer isso. Estes são problemas que precisamos continuar trabalhando no futuro.

Metrópoles: A vacinação contra a Covid-19 salvou milhões de pessoas em todo o mundo. Ao que você atribui ainda convivermos com a hesitação vacinal, especialmente em países mais ricos?

Seth Berkley: Se olharmos para a história das vacinas, você volta para a varíola, a vacina original. Houve hesitação vacinal. Existiam ilustrações de pessoas com vacas e chifres na cabeça porque a vacina foi feita a partir de vacas.

Sempre haverá alguma hesitação vacinal. O diferencial desta vez foi como os líderes políticos espalharam desinformação e isso afetou a população dramaticamente. De repente não era apenas uma pessoa local com um boato que você pode consertar com um líder político, científico ou religioso para ajudar as pessoas a entenderem. De repente, esses rumores se tornaram política nacional.

Também tivemos toda uma nefasta desinformação que veio nas redes sociais de bots russos e de outros lugares que usaram a desinformação como uma forma de prejudicar a democracia.

E então, o que estamos tentando fazer agora é reparar isso porque a mortalidade por Covid-19 foi ruim, mas não foi terrível. Quero dizer, foi cerca de 1,5%. A mortalidade do Ebola é de 70%; Sars foi 40%.

O desafio é que se tivermos uma pandemia muito pior, você precisa ter confiança se tivermos sorte o suficiente de ter uma vacina para as pessoas tomarem. Acho que esse é realmente o desafio.

Metrópoles: Agora que o pior da pandemia já passou, em que você está focando o seu trabalho, doutor?

Seth Berkley: Bem, há algumas coisas que são importantes. Uma delas é continuar a se preparar e obter novas vacinas como a da dengue, da tuberculose e da malária, fabricar essas vacinas e entregar às pessoas que precisam delas. É por isso que estou aqui no Brasil neste momento.

Estamos fazendo um trabalho muito bom sobre doenças infecciosas e estamos em uma transição agora porque reduzimos cerca de 70% das mortes por doenças preveníveis por vacinas.

O Brasil, é claro, teve um dos programas de vacinas mais fortes no mundo. Nos últimos anos, esses números caíram e agora precisamos recuperar isso novamente, e precisamos lançar essas novas vacinas.

Neste momento, dois terços (cerca de 66%) das mortes ocorrem por doenças crônicas, doenças cardíacas, AVC. Com o envelhecimento da população e uma redução das doenças infecciosas, isso vai subir para 90%.

Precisamos ter certeza de que começamos a prestar atenção às doenças crônicas. E é muito diferente: não existe vacina perfeita para as doenças crônicas, mas existem maneiras de evitar mortes.

Uma delas é um esforço de mudança de comportamento, mas os impostos também são muito importantes. Por exemplo, se você colocar imposto sobre o tabaco, para cada aumento de 10%, você reduz o número de novos fumantes em cerca de 4%.

Se você tem uma política que tem impostos e também certifica-se de que todo mundo paga esses impostos – e não apenas um pequeno grupo, ou há uma grande oferta ilícita – você consegue, com o tempo, começar a mudar o comportamento de tabagismo.

O mesmo com álcool, açúcar e bebidas adoçadas, porque elas estão criando obesidade e mudanças nos fatores de risco. O Brasil fez um bom trabalho em relação ao tabaco, embora seja sempre uma batalha.

E como alguém pode ter certeza de que você usa esse tipo de política para controlar melhor esses fatores de risco e ajudar as populações a serem educadas e mudar seu comportamento ao longo do tempo?

Metrópoles: Muito obrigada por vir ao Metrópoles. Esse foi mais um Metrópoles Entrevista.

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