Saúde mental: quando o lema ame o que faz vira problema
Psiquiatra explica que síndrome de burnout está associada à idealização do trabalho e à autocobrança excessiva
atualizado
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Em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, com dinâmicas que fogem do tradicional escritório em horário comercial, em que empresas querem profissionais multitarefas, o lema “trabalhe com algo que ame e você nunca terá que trabalhar um dia sequer” pode virar uma espécie de armadilha. A idealização a respeito do trabalhador verdadeiramente apaixonado pelo que faz e que se dedica longas horas ao ofício sem perceber pode ser o caminho para o desenvolvimento da chamada síndrome de burnout, condição psicológica associada ao esgotamento profissional.
Segundo a psiquiatra Rayana Melo, há uma expectativa implícita no pensamento “se eu amo o que faço, eu preciso dar conta” que vai além das motivações habituais por autonomia, independência financeira e projeção social. A especialista alerta que isso pode levar a excesso de esforço, dificuldade em estabelecer limites e descaso com necessidades pessoais básicas. “O quadro gera uma sobrecarga progressiva que pode gerar esgotamento físico e mental”, afirma a especialista.
A ênfase cultural em fazer o que se gosta facilita a legitimação de práticas abusivas, injustas ou degradantes no ambiente de trabalho. Esta é a tese defendida por pesquisadores da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), em parceria com professores de psicologia social da Universidade Estadual de Oklahoma (EUA). Em abril de 2019, eles publicaram um artigo no periódico científico Journal of Personality and Social Psychology, mostrando como o trabalho pode “cegar” as pessoas e levá-las a executar tarefas para as quais não foram contratadas.
Os moldes atuais também colaboram, pois o trabalho nem sempre se encerra no fim do expediente. Muitas pessoas complementam as tarefas em casa ou precisam estar on-line para solucionar problemas. “Estar disponível virtualmente fora do horário previsto pode trazer a sensação de pressão persistente, dificuldade de se desconectar, relaxar e a sensação de continuidade da atividade laboral”, explica Rayana. Ela acrescenta que autônomos ou profissionais que trabalham remoto frequentemente relatam dificuldade de organizar as agendas e separar o tempo destinado ao trabalho de suas outras atividades, permanecendo com a sensação de estresse constante.
No entanto, o burnout, independentemente da relação afetiva com a ocupação, é caracterizado pela dificuldade de criar uma rotina diária que seja satisfatória e sustentável. Isso pode acontecer em qualquer profissão, esclarece a psiquiatra Rayana.
Por isso, o tratamento começa com um mapeamento da situação que levou ao quadro disfuncional. O objetivo é evitar que isso se torne um padrão de comportamento. O acompanhamento psicoterápico, além do uso de medicações para controlar os sintomas, especialmente de ansiedade, frequentemente são necessários. “Um período de afastamento do trabalho é indicado para que a pessoa consiga se distanciar da fonte principal de pressão e estresse, se reorganizar emocionalmente, bem como regularizar seus hábitos”, finaliza.