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Os riscos da polêmica terapia de constelação familiar

Método pseudocientífico, que se popularizou quando passou a ser usado em mediações de conflitos na Justiça, é criticado por psicólogos

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1 de 1 Imagem mostra uma mão em cima de peões que representam uma família na constelação familiar - Metrópoles - Foto: GettyImages

“Você vai se ajoelhar na frente do pai do seu filho e vai pedir perdão por tudo o que você fez.” Essa frase teria sido dita por um mediador a Pamela (nome fictício) durante uma sessão de constelação familiar, um método pseudocientífico que é largamente usado no Brasil como prática terapêutica, até mesmo com aprovação do Ministério da Saúde.

Em 2016, Pamela denunciou o ex-marido depois de flagrá-lo abusando do filho do casal, de apenas 2 anos. A denúncia gerou uma investigação criminal contra o homem, que foi impedido de visitar o menino. Por isso, ele procurou a Vara da Família de São Paulo para pedir a guarda da criança e acusou a ex-mulher de alienação parental.

E meio ao impasse judicial sobre quem ficaria com o filho, Pamela foi notificada, no andamento do processo, a participar de uma sessão de constelação familiar. “Eu não sabia o que era aquilo, foi uma determinação judicial, ninguém me disse que eu podia não ir. O cara que conduzia disse que achava um desafio trabalhar com constelação de mães que acusam pais de abuso, que elas deveriam ser presas por deixar as crianças vulneráveis.”

Os defensores do método dizem que a constelação familiar é uma prática terapêutica que consiste na resolução de um problema ou trauma por meio da representação do sistema familiar. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a técnica tem sido utilizada no Brasil desde 2012 para a mediação de conflitos envolvendo divórcio, guarda, alienação parental e pensão alimentícia.

Sociólogos e psicólogos alertam, porém, que se trata de um método pseudocientífico que não só ignora as ciências sociais e a psicologia como viola os direitos humanos, reforça estereótipos sobre os papéis sociais do homem e da mulher e “pode desencadear ou agravar estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica”.

Mesmo assim, em 2018, o Ministério da Saúde aprovou a inclusão da constelação familiar no rol de Práticas Integrativas Complementares ofertadas nos postos de saúde. A portaria nª 702 de 2018 descreve que “a constelação familiar é indicada para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo ou abordagem religiosa, podendo ser indicada para qualquer pessoa doente”.

Em resposta a um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação, o ministério comunicou que em 2022 foram feitas mais de 11 mil sessões de constelação familiar pelo SUS em todo o Brasil e que a pasta não oferece cursos de formação na prática aos profissionais de saúde.

O uso dessa técnica que não se baseia na ciência no serviço público é contestado por conselhos de classe e acadêmicos, que alertam para os riscos de sofrimento psíquico dos participantes e pedem que seja banida.

Sessão para “recriar o problema”

Para tratar os conflitos apresentados pelos “constelados”, a abordagem usa outras pessoas ou bonecos, que representam os pacientes como numa espécie de teatro. A maneira como eles se comportam e se posicionam na sessão diante do problema que é recriado seria uma representação das emoções dos “constelados”. O mediador interpreta essa representação para chegar à solução do conflito. “Não temos instrumentos para explicar isso de forma científica, mas não quer dizer que não seja real”, explica o mediador, ou “constelador”, Mateus Santos.

Na sessão da qual Pamela participou, ela e o filho seriam representados por duas outras pessoas. O ex-marido faria o próprio papel. “Tinha uma mulher gritando e rolando no chão. O constelador disse que eu era assim como ela: louca”, relata. Ela diz que se recusou a se ajoelhar e pedir perdão ao homem depois da ordem do constelador. “Fui considerada rebelde, doente mental, um perigo para o meu filho.”

Santos diz que essa não é a conduta correta para consteladores. “Isso não é ético”, afirma. Ele defende que a técnica é eficaz, mas que, no serviço público de saúde, a aplicação deve ser supervisionada para evitar os riscos. “Entrar na intimidade do ser humano no nível anímico exige a máxima postura de respeito. É um cuidado que se deve ter com as vítimas.”

Na sentença do caso de Pamela, a juíza a mandou afastar-se do filho, com tratamento psiquiátrico. “Não o vejo há 8 anos”, diz a mãe. A juíza não afirma categoricamente que se baseou apenas na dinâmica da constelação familiar para tomar a decisão, mas menciona que não houve conciliação, além de levar em conta um laudo psiquiátrico e o relato do pai de que não se entendia com Pamela, que seria alienadora.

Poema para Hitler

O método da constelação familiar foi proposto pelo missionário católico alemão Bert Hellinger em 1978. Ao propor a abordagem, ele reuniu referências de psicologia com a sua experiência de 16 anos de trabalho na África do Sul com zulus e leituras taoístas. Ele considera que a origem dos conflitos nas relações está ligada à ancestralidade e que esses problemas podem se manifestar em várias gerações.

Com isso, Hellinger estabeleceu as três ordens do amor que seriam a base da estrutura familiar: o direito ao pertencimento à família, a hierarquia e o equilíbrio entre dar e receber.

Entre os mais polêmicos ensinamentos do “psicoguru”, como é frequentemente chamado pela imprensa alemã, está a de que as crianças vítimas de incesto pelo pai tenham compreensão para com o agressor e até mesmo aceitem o contato sexual: “A solução para a criança é que a criança diga para a mãe: ‘Mamãe, por ti, eu o faço com prazer’, e para o pai: ‘Papai, pela mamãe, eu o faço com prazer'”, “ensina” Hellinger.

As duas maiores associações de terapia sistêmica na Alemanha, a DGSF e a SG, externaram críticas aos métodos de Hellinger. “Também a prática real da constelação familiar deve ser vista de forma crítica, como eticamente inaceitável e perigosa para as pessoas afetadas”, afirmou a DGSF em posicionamento oficial, em 2003, ao se distanciar da prática.

Na Alemanha, Hellinger é extremamente polêmico e já foi acusado de relativizar o nazismo. Ele é frequentemente lembrado como o autor de um controverso poema dedicado a Adolf Hitler, no qual pede ao leitor para que se identifique com o líder nazista, e até mesmo morou de aluguel, por algum tempo, no lugar onde ficava o segundo escritório de Hitler, em Berchtesgaden, no sul da Alemanha.

Riscos da prática

O sociólogo Mateus França, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que estuda a implementação da constelação familiar no serviço público, alerta que o uso do método leva a uma violação de direitos humanos, na medida em que molda decisões judiciais e tratamentos alternativos sob uma perspectiva conservadora que reforça papéis de gênero e vai de encontro a avanços no direito de família.

“Ignora as ciências sociais e reproduz violência de gênero ao partir do pressuposto de que pessoas violentas não podem ser excluídas do sistema familiar. Outro exemplo é que se cria um estereótipo de família: se acontece uma adoção por casais homoafetivos, um tem que assumir o papel masculino, e o outro, o feminino. É um retrocesso no direito de família”, afirma.

“Coloca a culpa do conflito na mulher. São afirmações muito perigosas, de por exemplo não excluir da família o homem que a agrediu, ou então que um feto abortado falta na hierarquia da família por ter sido excluído.”

Outro conceito aproveitado por Hellinger é o de campo morfogenético. Elaborado pelo biólogo Rupert Sheldrake, esse campo diz respeito a uma memória coletiva que seria captada pelos indivíduos de uma espécie. Seria assim que representantes teriam acesso às sensações dos constelados.

O professor de física Marcelo Yamashita, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), diz que a argumentação é uma estratégia para justificar as interpretações oferecidas na constelação e os conflitos entre as partes, mas que campos morfogenéticos nunca foram provados. “Isso se fantasia de ciência e não tem respaldo nenhum na física, nem respaldo em experimentos científicos, é algo inventado, nunca teve nenhum indício de comprovação dessa hipótese.”

O físico diz que a constelação familiar atende aos requisitos para ser considerada pseudociência: ter um autor que elaborou o tema para justificar a prática, evitar evidências conflitantes e resistir a testes, por exemplo.

Uso no serviço público

França diz ainda que “depender de crenças não é interessante para uma política pública, principalmente envolvendo questões sobrenaturais”. Ele lembra que políticas públicas eficientes precisam ser alvo de pesquisas que atestem sua eficácia e garantam a segurança do método e a compreensão dos riscos envolvidos na sua aplicação.

A resolução nº 125 do CNJ permitiu que os tribunais aplicassem a constelação familiar como prática alternativa para agilizar a solução dos conflitos judiciais antes que chegassem ao litígio. Atualmente, pelo menos 16 tribunais se valem do método nas audiências e processos. Em outubro, o CNJ deu início a um julgamento para restringir o uso de alternativas terapêuticas no judiciário, como a constelação.

“É persuasivo para quem trabalha no Direito a ideia de celeridade, chegar a um acordo, baixar a pilha de processos. É um objetivo defensável, mas não deve ser um vale-tudo, precisa buscar formas seguras para quem acessa o sistema de justiça”, afirma França. Por isso, o advogado propôs uma sugestão legislativa para banir a prática no serviço público. Agora, o texto aguarda que o relator, senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que é simpático à constelação, apresente um parecer sobre o assunto.

Esse cenário de disseminação da constelação familiar no serviço público motivou uma nota conjunta do Conselho Federal de Psicologia e acadêmicos. No documento enviado ao Ministério dos Direitos Humanos, o grupo afirma que a prática “pode desencadear ou agravar estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica, exigindo assim um acompanhamento profissional psicológico que não é oferecido durante as sessões”.

O ministério pediu ao Conselho Nacional de Direitos Humanos que avalie o uso da prática. O colegiado ainda analisa o caso.

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