“Não somos heróis”, diz mãe do skatista com paralisia cerebral
A ativista Lau Patron fala sobre o filho João Vicente, garoto cujas imagens brincando em um veículo adaptado viralizaram na internet
atualizado
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Um vídeo de uma criança brasileira comoveu a internet na última semana. O protagonista, João Vicente Patron Santoro, 7 anos, teve um AVC com 1 ano e 8 meses de idade e, desde então, tem paralisia cerebral. A felicidade do garoto ao brincar e a dedicação da mãe, Lau Patron, 31, que empurra o modelo adaptado, chamaram atenção da rede e já obtiveram mais de 40 mil visualizações desde o último domingo (20/10/2019), quando as imagens foram publicadas.
Mãe de João Vicente, a escritora e ativista Lau Patron tenta aproveitar o momento para desconstruir as imagens de coitado ou de herói que a sociedade alimenta sobre as pessoas com deficiência. Lau conversou com o Metrópoles e sugere que o vídeo inspire reflexões: “Não existe nada de bonito em uma pessoa que precisa fazer um esforço sobre-humano para chegar ao trabalho. Isso não precisa de medalha, porque a medalha não serve pra nada. Precisamos nos comprometer de verdade, e é isso que estou tentando fazer desde que o vídeo viralizou. Transformar o discurso ‘parabéns, esse menino é incrível’ para ‘o que podemos fazer para que esse menino incrível tenha uma vida minimamente digna?’”.
A história de João Vicente e de sua mãe é contada no livro 71 Leões: Uma história sobre maternidade, dor e renascimento (Editora Belas-Letras). Em forma de diário, o texto narra como foram os 71 dias em que João ficou internado na UTI, em coma, após ser diagnosticado com a síndrome hemolítico-urêmica atípica (SHUa). A doença é rara, grave, sistêmica e possivelmente fatal.
A popularidade do vídeo mudou alguma coisa na vida ou na rotina de vocês?
Não sei ainda, estou tentando entender o que está acontecendo. Sou uma profissional da inclusão que tem um olhar específico sobre isso: combato o assistencialismo, o capacitismo, que é olhar a pessoa com deficiência sempre como um coitado. Também não gosto da percepção de que são heróis ou exemplos de superação. Nada disso para mim serve, é tudo preconceito, porque tira a humanidade daquela pessoa. Muitos usam a pessoa com deficiência como exemplo de superação, como uma métrica para si mesmos: “Se ele consegue fazer isso, qual a sua desculpa hoje?”. Isso silencia a subjetividade da pessoa, a história e a vida dela.
A sociedade que impõe um monte de barreiras para as pessoas com deficiência, que precisam fazer um esforço sobre-humano para ter uma vida normal, é a mesma que as condecora como se fossem heróis. Quando o vídeo viralizou, pensei: “Bom, vamos falar sobre isso”. Mas acabou indo para o lado errado. Muitas pessoas disseram que sou uma heroína, que João é um herói, virou um sensacionalismo em cima desse fato. Mas respirei fundo e vi que era uma oportunidade para falar de coisas que precisam ser ditas: falar sobre inclusão.
O vídeo que tocou tanta gente é de um menino andando de skate. Ele serve para pensarmos em como estamos falhando como sociedade, porque foi uma coisa simples, um brinquedo com design modificado. As mudanças também podem ser assim, simples.
Como era sua relação com a maternidade antes do João? Pensava em ser mãe?
Eu nunca quis ser mãe. Sempre quis ser independente, e a maternidade para mim parecia uma coisa que eu não iria dar conta, que poderia me tirar a independência. Acabei engravidando sem planejamento, mas não romantizo a maternidade, não acho que toda mulher precise ser mãe, e não acredito que a maternidade faz você mais mulher que uma outra que não tem filhos. Mas eu e o João temos uma conexão muito potente, somos muito amigos. Mas não sei se toda maternidade é assim.
O que mudou na sua vida depois do diagnóstico do João e depois do AVC?
Essa primeira parte da experiência está no livro, que é um diário dos dias em que a gente estava no hospital, esperando o João sair do coma. Quis publicar bem cru e verdadeiro, porque há mães que acham que sou imbatível, a mulher mais forte do mundo. Quis lançar um livro verdadeiro para que a gente parasse de achar que não podemos admirar pessoas normais.
Brinco que renasci e me sinto outra pessoa a partir de tudo que aconteceu. A maternidade me transformou muito e aprendi também depois do AVC. Aprendo até hoje com o preconceito que ele sofre. Acho que tem uma coisa nessa experiência que fura a bolha em que a gente vive. Estamos em uma sociedade em que a gente se cerca de pessoas muito parecidas com a gente, pouco abertas à inclusão e à diversidade. Sou muito grata a esse “furo na bolha” que aconteceu com o João. Não existe nada mais urgente e inovador que incluir as pessoas. Agora tenho outra vida e acho que gosto mais desta, embora tenha muitos desafios.
O que mais lhe magoa ou incomoda com relação a comentários sobre a saúde do João?
Incomoda a falta de comprometimento com a mudança. Essa conversa de inclusão, de que se tenha empatia, de que ele é um anjo na Terra, é uma conversa rasa, é uma fuga. As pessoas falam essas coisas e, ao mesmo tempo que parece um discurso amoroso, essas mesmas pessoas se mantêm distantes.
A mesma sociedade que diz que sou escolhida por Deus é a que me deixa sozinha. Quando a gente se aprofunda e vê que as pessoas com deficiência são pessoas com subjetividade e personalidade, as coisas mudam de lugar. Precisamos de comprometimento. Essa conversa rasa não ajuda, a gente precisa mergulhar, aprender convivendo uns com os outros, aprender a ouvir, a saber do outro pelo outro.
Não existe nada de bonito em uma pessoa que precisa fazer um esforço sobre-humano para chegar ao trabalho. Isso não precisa de medalha, porque a medalha não serve para nada. Precisamos nos comprometer de verdade, e é isso que estou tentando fazer desde que o vídeo viralizou: transformar o discurso “parabéns, esse menino é incrível” para “o que podemos fazer para que esse menino incrível tenha uma vida minimamente digna?”.