Médicos e CFM disputam divulgação de especializações na Justiça
Regra geral diz que profissional precisa fazer residência para ser chamado de especialista, mas médicos com pós-graduação discordam
atualizado
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De acordo com um decreto publicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 1989, um médico, para ser considerado especialista (neurologista, cardiologista, etc), precisa ter feito residência médica, que dura até cinco anos, e envolve cerca de 60 horas por semana de trabalho prático e aulas teóricas. A outra única via possível é fazer uma prova de especialidade nas sociedades médicas.
Quando a regra foi feita, porém, não se considerava a evolução da quantidade de escolas de medicina e nem da realidade da profissão. Não foi incluída, por exemplo, a possibilidade de cursos de pós-graduação serem aceitos como prova de que o profissional estudou o assunto suficientemente para ser considerado especialista, como ocorre em outras profissões.
Há cerca de 10 anos, médicos da Associação Brasileira de Médicos com Expertise em Pós-graduação (Abramepo) vem brigando com o CFM para que o diploma de especialista seja suficiente para comprovar o conhecimento. Os dois lados já ganharam ações e também perderam.
A associação recebeu vereditos positivos para que seus integrantes usem o título de especialista, e o CFM conseguiu derrubar alguns deles e manter o posicionamento anterior. Não se enxerga fim na batalha judicial, e ambas as partes acreditam que o desentendimento chegará ao Supremo Tribunal Federal (STF) nos próximos anos.
Futuro da profissão em jogo
O presidente da Abramepo, Eduardo Costa Teixeira, é médico e professor universitário, e explica que a residência médica é um tipo de pós-graduação considerada padrão-ouro. “Quando se fez a lei, o CFM confiou que as vagas da residência seriam suficientes. Ela seria uma pós-graduação, que daria a condição de especialista. O conselho distorce isso, considerando-a obrigatória para comprovar o conhecimento, mas qualquer pós deveria dar o título”, reclama.
Segundo ele, “como a maioria das leis”, a lei da residência médica não era respeitada de início. Poucos médicos iam ao conselho registrar a especialidade e davam importância para o título, mas, com o tempo, o registro passou a ser mais respeitado.
“Criou-se essa cultura do especialista. Há cerca de 10 anos, o conselho começou a aplicar de fato a resolução. Colegas com pós não conseguem se registrar e têm dificuldade para prestar concurso, firmar contratos e se entender com convênios”, explica o presidente da Abramepo.
Teixeira, que se formou em 1985, antes da lei, conta que tem obrigação de preencher o currículo lattes por ser professor universitário e colocar suas pós-graduações, mas não é reconhecido como especialista. Alguns membros da Abramepo sequer colocam o diploma na parede por medo de serem processados pelo CFM.
“Quando o médico com pós-graduação divulga uma especialidade, é acusado de estar enganando ou sugestionando o paciente. O conselho está extrapolando. Muitos acabam colocando a pós regulamentada pelo MEC na gaveta, como se fosse ilegal. Isso, para nós, é um absurdo”, afirma.
O médico concorda que é necessário rever as regras da pós-graduação, estabelecendo um mínimo de horas para que sejam validadas, mas afirma que o número de vagas para residência não acompanhou o crescimento das escolas de medicina no país e que, hoje, só 30% dos profissionais formados têm acesso à pós-graduação especial.
“Acaba sendo muito prejudicial para o paciente, que pode ter um especialista na esquina, mas não terá conhecimento pois o profissional não pode anunciar e nem entrar no livro do convênio. Quando se deixa o mercado na mão de poucos, demora o atendimento, o preço aumenta e fica difícil de marcar consulta”, diz o presidente da Abramepo.
CFM defende que regra protege o paciente
O CFM, em contrapartida, acredita que a residência médica completa, que soma mais de duas mil horas de serviço prático e teórico, é a única maneira de se tornar especialista em qualquer área da medicina além da prova de títulos nas sociedades de especialistas.
“É uma prática diária, não só no atendimento, acolhimento e orientação, mas também vivenciando todo o cenário e a complexidade que é atuar com o ser humano. Só conseguimos isso presenciando as atividades práticas da especialidade”, afirma Hideraldo Cabeça, 1º Secretário do CFM e representante do conselho na Comissão Nacional de Residência Médica.
Para o conselho, o paciente pode ser enganado se o médico se apresenta como especialista sem ter o reconhecimento do CFM. Com a residência, haveria a certeza de que ele está preparado para lidar com os casos de sua área.
O conselho defende que a pós-graduação é importante como forma de adquirir conhecimento para atender melhor o paciente na prática, mas “nos termos vigentes no Brasil”, não existe possibilidade deste profissional ser considerado especialista.
Ele conta que, de fato, não existem vagas de residência suficientes para toda a demanda, mas aponta que existe uma ociosidade de vagas em algumas áreas específicas.
“Em algumas situações, principalmente em formados por faculdades particulares, o profissional não busca de imediato a residência por ter necessidade de ressarcir o FIEIS. Com isso, ele vai buscar tardiamente a especialização. Mas o ideal é que, realmente, tenhamos mais vagas de residência médica”, diz o secretário do CFM.
Batalha judicial
Como as duas partes não se entendem, a discussão se arrasta na Justiça. Como associação, a Abramepo entra com um processo pedindo que os afiliados possam usar a pós-graduação como especialidade, tendo como base a lei federal 3.268/1957, que diz que todo médico com diploma validado no MEC e com registro no CRM local pode exercer a medicina em qualquer uma de suas especialidades.
A ação civil pública é repetida cada vez que os novos associados querem estar abarcados pela decisão — por isso, já são seis processos. Todos tiveram ganho de causa em primeira instância.
Porém, em seguida, o CFM entra com um pedido de cassação da decisão com base na Resolução CFM 2.217/2018, em que “fica expressamente vetado o anúncio de pós-graduação realizada para a capacitação pedagógica em especialidades médicas e suas áreas de atuação, mesmo que em instituições oficiais ou por estas credenciadas, exceto quando estiver relacionado à especialidade e área de atuação registrada no Conselho de Medicina”. O conselho já conseguiu derrubar pelo menos três ações, e as outras ainda não estão tramitando.
“Fica nesse jogo. A Abramepo entra com novas ações porque precisa incluir novos médicos, e o entendimento da juíza foge um pouco à regra, que é contumaz, pacífica. Nós vamos apelar até que seja julgado definitivamente, mas isso ainda está longe de acontecer”, explica o advogado Alejandro Bullon, da Coordenação Jurídica do CFM.
O presidente da Abramepo explica que, como o processo da Justiça é lento, a associação está começando a se articular politicamente, conversando com deputados e senadores em busca de um caminho que atualize as leis em vigor.
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