Hilary e Mellina: cadela já guiou tutora cega em visitas a 5 países
Mellina Reis encontrou a companhia perfeita para passear por aí. Agora ela se prepara para uma despedida difícil, Hilary vai se aposentar
atualizado
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Quando começou o processo de perda da visão, no final de 2010, provocado pela degeneração na retina, a turismóloga Mellina Reis, 38 anos, acreditava que se sentiria mais confortável com um cão-guia do que com uma bengala para se locomover pela cidade de São Paulo. O que ela não imaginava era que, com a decisão, ganharia também uma companheira de viagens.
Desde março de 2014, Mellina é tutora de Hilary, uma cã-guia da raça labrador que entrou na vida dela por meio de um projeto entre o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Instituto Iris Cão-Guia. A chegada de Hilary deu independência e segurança para a deficiente visual viver o sonho de conhecer o mundo. Juntas, elas já visitaram cinco países, incluindo os Estados Unidos e a Argentina, e mais de 60 cidades do Brasil.
Na última semana, a dupla desembarcou em Brasília para mais uma aventura, com o apoio do projeto O Que Os Olhos Não Veem. Elas visitaram a Catedral de Brasília, a Torre de TV, o Planetário, o Memorial JK e o Pontão do Lago Sul e aproveitaram para conhecer as belezas naturais de Pirenópolis, cidade a 150 quilômetros da capital.
Na quarta-feira (18/8), Mellina teve a experiência de conhecer os monumentos através do tato, na exposição Brasília na Ponta dos Dedos, do Visão Hospital de Olhos. O projeto faz parte da Biblioteca de Braille da instituição e está aberto ao público por meio de agendamento.
“Ela melhorou muito a minha vida. Sou muito grata por ter tido o privilégio de ter a Hilary como minha cã-guia”, disse Mellina, emocionada por lembrar que, daqui a alguns meses, sua companheira de aventuras vai se aposentar do trabalho como guia. A labradora está com dez anos, idade recomendada para deixar a atividade.
A partir do início de 2022, Hilary ficará em casa, como a maioria dos animais de estimação, e Mellina terá que encontrar outro cão-guia. Por mais que Hilary esteja saudável e em condições de acompanhar Mellina, a aposentadoria é necessária para poupá-la do desgaste da rua. “Não adianta querer que o cão guie com dor, com frio, cansaço ou o que for. A aposentadoria é para poupá-los”, explica Mel.
Emocionalmente, ela diz que ainda não está preparada para a mudança. “Ainda não me cadastrei nas instituições para encontrar uma substituta. Já me falaram que tenho de fazer isso, mas não consegui. Eu entro no site e não finalizo o cadastro. Ela é muito importante pra mim. A gente construiu muitas coisas juntas na vida”, conta.
A última viagem das duas deveria ser um passeio de 20 dias para o Nordeste, mas a pandemia da Covid-19 atrapalhou os planos de Mellina, que não quer expor Hilary ao desgaste físico no próximo ano.
Influenciadoras digitais
As experiências de Mellina e Hilary são registradas no 4 Patas pelo Mundo. O blog nasceu em 2016, após uma mudança no rumo profissional da paulistana, que passou a produzir conteúdos sobre acessibilidade e inclusão no setor do turismo. De acordo com a tutora, que também mantém um perfil do Instagram, os textos são um incentivo para que pessoas como ela levem uma “vida completamente normal e muito divertida”.
Turismo acessível
Para conseguir viajar com segurança e autonomia, um deficiente visual precisa ter a garantia de que encontrará destinos com infraestrutura adequada para a locomoção e que aceite a presença de um cão-guia, figura fundamental para o deslocamento de muitos.
Pelas andanças pelo mundo, Mellina já se deparou com todo tipo de situação. Entre os destinos que se preocupam em atender bem o turista com deficiência, ela destaca Foz do Iguaçu e Curitiba, no Paraná, Uruguai e os Estados Unidos. “Eu vejo que cada vez mais os locais estão se preocupando com o turismo acessível”, afirma.
A experiência na Argentina, por outro lado, não foi tão agradável. “Tive muitos problemas em Buenos Aires com a Hilary e não tinha tantos locais com acessibilidade. Eles ignoravam a lei. Não foi uma experiência positiva”, lembra.
Preparativos para viajar
A rotina de Hilary inclui sessões de fisioterapia com natação e eletroterapia a cada 15 dias para ajudar no condicionamento físico, na qualidade de vida e, consequentemente, na longevidade. Antes da pandemia, as sessões eram semanais.
Mel compara a evolução de Hilary entre duas viagens feitas para a Disney, em 2017 e 2019. Na primeira, a cã-guia não aguentou o ritmo dos parques e, no segundo, seguiu firme até o final. “Em 2017, saí do parque na cadeira de rodas com ela no meu colo. Eu estava bem, mas eles não deixariam que eu alugasse a cadeira para um cão-guia. Em 2019, ela teve muito mais disposição e aguentou tudo”, lembra Mel.
Quando a viagem se aproxima, a primeira bagagem a ser arrumada é a de Hilary. A mala vai com a documentação com carteirinha de cão-guia e de vacinação, uma coberta para dormir, toalha e capa de chuva. Para os destinos ensolarados também são incluídos sapatinhos e uma coleira e guia de nylon.
Diagnóstico
Mellina descobriu uma degeneração na retina com distrofia dos cones e bastonetes aos 14 anos. O problema se agravou há 11 anos, quando ela tinha 27 anos. “Foi quando comecei a me considerar uma pessoa com deficiência visual, precisei aprender a usar a bengala e me aceitar com essa condição”, lembra.
Após um período de desânimo por conta das mudanças de vida, Mellina conta ter compreendido que, apesar da deficiência, poderia ter uma vida normal, com algumas adaptações. Atualmente, ela tem apenas a percepção de luz e vultos.
A degeneração na retina é uma doença genética e progressiva que não tem cura conhecida nem uma forma de prevenção, segundo Nidia Paula Gomes, oftalmologista do Visão Hospital de Olhos. Os casos costumam se manifestar na infância e caminham para uma perda gradativa na vida adulta.
“Os cones são como fios condutores da imagem. Para a gente ter uma imagem limpa, toda a extensão da retina tem que funcionar perfeitamente, mas quando eles sofrem alguma alteração genética, passam a não funcionar de forma adequada”, explica a médica.