“Faria de novo”, diz médico premiado após recusar título de Bolsonaro
Epidemiologista responsável por pesquisas sobre aleitamento materno acha irônico que rusga política tenha o tornado conhecido
atualizado
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O epidemiologista Cesar Victora, 71 anos, receberá o maior prêmio da ciência brasileira nesta quarta-feira (10/5). Será entregue a ele o Prêmio Almirante Álvaro Alberto em uma cerimônia na Escola Naval da Marinha, no Rio de Janeiro. A medalha é entregue em um rodízio de três anos, sendo premiado um representante das ciências humanas, um das ciências exatas e, como ocorrerá agora, um das ciências da vida.
“Para mim é uma honra ser o escolhido, ainda mais considerando que é a primeira vez que um representante da saúde coletiva vai receber este prêmio. Sem dúvida este é o maior reconhecimento que um pesquisador brasileiro pode receber”, afirmou Victora, em entrevista exclusiva ao Metrópoles.
Aleitamento: Uma vida de pesquisa
Victora é responsável por uma pesquisa conduzida no início dos anos 1983 e que mudou o comportamento do mundo quanto ao aleitamento materno. Foi sua investigação uma das responsáveis por demonstrar que a amamentação dava maiores defesas ao sistema imune das crianças e impedia mortes de recém-nascidos. As 4 mil crianças do estudo foram pesquisadas por mais de três décadas.
“Quando comecei a minha pesquisa, em 1983, havia a ideia de que o leite em pó era mais nutritivo que o leite materno. Também havia muitas mães que diluíam o leite de vaca para dar a seus filhos. Naquela época, a diarreia era a maior causa de morte do Brasil em bebês e tínhamos a solução mais barata e mais simples bem perto, que era o aleitamento”, lembra.
A pesquisa de Victora, posteriormente replicada no Peru e nas Filipinas, o tornou internacionalmente reconhecido e mudou o entendimento dos cuidados da primeira infância em todo o mundo. Hoje, as curvas de crescimento estabelecidas por ele ajudam a orientar a pediatria em mais de 140 países.
“Sem falsa modéstia, tenho muito orgulho de pensar que meu trabalho pode ter ajudado a salvar a vida de milhões de crianças, acho que este é o maior reconhecimento que se pode receber”, diz.
Rusga política
Ainda assim, boa parte do grande público brasileiro acabou conhecendo a produção de Victora a partir do conflito que ele teve com o governo Bolsonaro. Ele acha engraçado que seu nome tenha ficado associado ao episódio, mas afirma que não havia nenhuma outra opção a ser tomada.
Em 2021, o epidemiologista havia sido um dos selecionados para ser condecorado pelo então presidente Jair Bolsonaro para receber o título de grã-cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, mas recusou a honraria.
“Tomaria essa decisão de novo quantas vezes fossem necessárias. Estávamos vivendo um governo completamente anticiência, antisaúde. Nenhum cientista acerta 100% das vezes, mas ele tinha a capacidade de estar errado sempre quando falava de saúde”, aponta Victora.
Embora tenha sido duramente acusado por apoiadores do ex-presidente, Victora aponta que não tem redes sociais e que quase nada sabe das críticas, mas sustenta que o negacionismo da ciência propagado por correntes políticas é extremamente preocupante para pesquisadores brasileiros.
“Pedro Hallal, meu aluno, foi o rosto público de nossa pesquisa sobre a epidemia de Covid e foi brutalmente atacado. A esposa dele foi perseguida, tudo por estarmos levando informação ao público. Uma fake news hoje em dia se propaga muito mais rápido do que uma pesquisa científica que levou anos para ser produzida”, diz.
Quem é Cesar Victora?
Hoje professor emérito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, Cesar Victora se formou em medicina em 1976. Ele é membro da Academia Brasileira de Ciências, coordenou publicações da revista Lancet em 2003, foi presidente da Associação Epidemiológica Internacional na Inglaterra, entre 2011 e 2014, e desde 2022 é membro do Conselho Científico da OMS.
Futuro do cientista
Depois de 40 anos de pesquisa científica e de um trabalho intenso como epidemiologista durante a pandemia de Covid, Victora se prepara para pisar no freio. “Estou aposentado e tenho publicado menos. Quero estar mais com minha família, que é algo que não pude por muitos anos”, diz. A desaceleração, porém, não impede o médico de se envolver com pautas que ainda lhe despertam o interesse científico.
“Fiquei mais velho e acho que estou mais imediatista. Não quero descobrir novos tratamentos e vacinas, quero que os remédios que a gente já tem cheguem às pessoas por que vivemos um cenário de muita desigualdade. Minorias raciais, econômicas e geográficas muitas vezes são excluídas dos sistemas de saúde”, aponta. As próximas pesquisas de Victora vão nessa direção, avaliando dados de mais de 100 países.
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