Entenda por que resolução do CFM sobre canabidiol desagrada pacientes
Conselho Federal de Medicina publicou documento que proíbe médicos de prescrever medicamento para condições além das pré-determinadas
atualizado
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Na última sexta-feira (14/10), o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução polêmica limitando a prescrição médica de medicamentos com canabidiol e impedindo a divulgação de informações sobre a utilização da substância ativa, conhecida como CBD, para fora da comunidade científica. O documento é o primeiro da entidade a delimitar o uso da substância desde 2014.
Segundo o texto, os medicamentos com CBD só poderão ser prescritos a crianças e adolescentes com as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut que têm epilepsias refratárias – ou seja, que não são curadas com nenhum outro fármaco -, e no tratamento do Complexo de Esclerose Tuberosa. O uso da cannabis in natura ou outros derivados dela para fins medicinais ficam proibidos para uso terapêutico de qualquer outra doença.
A decisão desagradou pacientes, médicos, pesquisadores e empresas que utilizam ou estudam o uso da planta para o tratamento de mais de 20 condições de saúde.
Em resposta à publicação do CFM, o Ministério Público instaurou uma auditoria para apurar a resolução. Devido à repercussão do documento, o conselho de medicina decidiu abrir, nessa quinta-feira (20/10), uma consulta pública para receber contribuições e atualizar o documento. A ideia é dar espaço a mais debates e permitir que a população, médicos e especialistas se manifestem para reavaliar e melhorar o texto.
O CBD é um dos componentes extraídos da planta cannabis – conhecida popularmente como maconha. Antes da nova resolução ser publicada, o CFM autorizava o uso medicinal somente para tratar epilepsias, mas não proibia a prescrição da terapia para outras condições, como dores crônicas, ansiedade, depressão e insônia.
A psiquiatra Ana Hounie, conselheira da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC), relata que a resolução surpreendeu a todos. “Ficamos chocados, porque o canabidiol só é prescrito para pacientes que já tentaram de tudo. A resolução tira uma oportunidade terapêutica comprovada para o tratamento de mais de 20 condições de saúde. O CFM inclusive já realizou uma consulta pública sobre o uso da cannabis medicinal, mas ignorou o posicionamento que foi dado em favor dela. Deram a justificativa de proteger a segurança dos pacientes”, diz.
Segundo a psiquiatra da APMC, a alegada segurança dos pacientes é contraditória, já que o canabidiol é utilizado de modo compassivo, ou seja, para amenizar sintomas de pessoas que se encontram em estado de muito sofrimento. Para Ana, mesmo que haja possibilidade de efeitos colaterais (que, segundo ela, são raríssimos), os benefícios ainda são superiores aos riscos.
Estudos sobre canabinoides
A presidente do Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide (CBRMC) e do Núcleo de Desenvolvimento em Medicina Canabinoide e Integrativa (NDMCI), Ailane Araújo, relembra que a quantidade de estudos científicos e casos médicos já publicados sobre a cannabis medicinal corroboram o uso da substância. Somente na PubMed, uma das principais plataformas de divulgação científica, existem quase 12 mil artigos com evidências mostrando a eficácia da resposta terapêutica dos produtos à base de cannabis para vários problemas de saúde.
Ailane explica que a decisão para limitação das prescrições implica na perda ou impossibilidade do tratamento adequado de indivíduos que teriam respostas terapêuticas significativas e melhor qualidade de vida. A proibição da ministração de palestras e cursos sobre uso do canabidiol e de outros produtos derivados de cannabis fora do ambiente científico também afetaria a comunidade médica e os pacientes diretamente.
“Consideramos essa medida uma afronta, como se quisessem nos calar. Mas não ficaremos calados, pelo contrário, iremos superar todos os desafios para continuar com nossa causa, que beneficia milhares de pessoas”, afirma.
A presidente do CBRMC e do NDMCI explica que existe um incentivo do FDA (Federal Drug Administration, órgão norte-americano equivalente à Anvisa no Brasil) para a geração de mais dados sobre os usos clínicos da cannabis, com cartilhas para orientar médicos, empresas e profissionais da saúde.
“Como médicos, temos na nossa prática clínica um número grande de evidências baseadas nos casos reais, aceitas e validadas em diversos países fora do Brasil. Não podemos nos calar, como profissionais da saúde, por conta de um conselho que está desatualizado e agindo de forma ilegal”, sustenta.
O professor Renato Malcher, neurologista do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB), também critica a atitude contraditória do CFM. Ele considera a decisão polêmica, indo de encontro às divulgações científicas recentes, congressos e associações internacionais que apontam os benefícios do canabidiol e do tetrahidrocanabinol (THC) para amenizar uma série de problemas de saúde.
“Ao que parece, existe um posicionamento político claro de negacionismo científico por parte do CFM. A consequência dessa resolução se traduz em consequências humanas, não estatísticas. Isso gera um terrorismo psicológico nos mais de 90 mil brasileiros que utilizam canabidiol para outros fins que não as especificidades citadas no documento”, afirma o professor, que pesquisa o uso medicinal da planta desde 2005.
O neurologista também acredita que as restrições para os produtos à base de cannabis podem dificultar o acesso aos medicamentos e levar ao fortalecimento do mercado ilegal desses produtos.
Decisão inconstitucional
A resolução também gerou polêmicas de ordem judicial. Para a advogada Margarete Santos de Brito, fundadora e diretora da Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), a decisão é um retrocesso e uma afronta à liberdade.
“É sobre vidas, qualidade de vida e esperança. O CFM nunca cassou a carteira de nenhum médico porque sabe que essas resoluções são inconstitucionais. Somos pressionados desde 2015, mas graças a profissionais de saúde corajosos, nós avançamos e não iremos nos intimidar”, diz.
A diretora da Apepi afirma que a antiga resolução já era restritiva, mas isso nunca impediu a prescrição para mais de 20 condições médicas de pacientes como dor crônica, fibromialgia, Parkinson, Alzheimer e depressão, que tiveram suas vidas transformadas pelo uso da cannabis medicinal.
O advogado Emílio Figueiredo também sustenta a inconstitucionalidade da resolução do CFM. Segundo ele, ao limitar a prescrição médica, o conselho viola o direito à saúde dos pacientes e a garantia fundamental da liberdade profissional do médico. Além disso, o documento infringe a liberdade de expressão e o acesso à informação ao impedir que os médicos ministrem cursos e palestras sobre o assunto.
O advogado Rodrigo Mesquita, da Melo Mesquita Advogados, é especialista no acesso aos medicamentos com canabidiol, e afirma que nada deve mudar para quem já faz o tratamento. “A resolução do CFM busca regular a prática médica, não a conduta de pacientes. Porém, se estes ou seus médicos se vierem impedidos ou ameaçados de darem continuidade a tratamento em curso, é aconselhável que busquem um advogado com experiência no tema para estudar a melhor saída”, explica.
Canabidiol vicia?
De acordo com Ailane, não existem estudos com CBD que sugerem dependência ou algum tipo de vício. Ela garante que, ao contrário do que diz o senso comum, o canabidiol é totalmente seguro, não é alucinógeno e não vicia.
“Há vários estudos científicos que demonstram sua segurança, eficácia e a forma de atuação. O grau de segurança é imensurável quando comparado a outros medicamentos disponíveis no mercado, inclusive ao álcool. Ninguém morre por overdose de cannabis, por exemplo, e não existe uma quantidade que possa causar uma depressão respiratória e levar à morte, pois a substância não atua em regiões do cérebro como o bulbo”, explica.
Ela ressalta a diferença entre o uso medicinal e recreativo da cannabis. No primeiro, a intenção é aproveitar as propriedades terapêuticas dos fitocanabinoides presentes na planta para que atuem no organismo do paciente e regulem os canabinoides naturais, tratando o corpo como um todo.
“O sistema endocanabinoide é o nosso maior sistema e está presente em todos os órgãos. Ele é o maestro do corpo, mantendo equilíbrio e produzindo a homeostase, responsável pelas nossas principais funções vitais de sobrevivência. Portanto, se há um desequilíbrio ou uma falta, quando o médico suplementa o sistema do paciente, ele é reequilibrado e, por isso, temos as respostas terapêuticas para diversas doenças”, afirma.
A médica acrescenta que o uso recreativo, ao contrário do medicinal, foca em tipos de cannabis que têm uma concentração maior de tetrahidrocanabinol (THC), que atuam em receptores do cérebro e podem causar efeitos alucinógenos, proporcionando ao usuário euforia e relaxamento, bem como alteração da parte cognitiva.
Tratamento essencial
De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2021 foram garantidas mais de 40 mil autorizações e 5.254 renovações para o uso de canabidiol no Brasil. A estimativa das entidades, pesquisadores e médicos é que existam mais de 100 mil brasileiros que se beneficiam de canabinoides para amenizar e tratar os mais diferentes tipos de condições crônicas e inflamações.
Uma dessas pacientes é Quitéria D’Paula Alves, técnica de enfermagem que mora em João Pessoa (PB) e foi diagnosticada com neuromielite óptica (NMO) em 2017. Ela conta que, devido à condição, não conseguia permanecer de pé nem sentada, passava vários dias sem dormir, sentia fadiga extrema e apresentava dores musculares muito intensas.
“Minha neurologista me prescreveu um óleo com CBD como complemento a outros medicamentos para reduzir sintomas e sequelas da minha condição. Depois dos trâmites para conseguir a autorização, recebi o remédio e, desde que comecei a tomar, consigo dormir bem, me sinto menos cansada e não tenho mais câimbras”, comenta. Para ela, o CBD é uma “pequena grande ajuda” para sua qualidade de vida.
“Com a resolução do CFM, fiquei com frio na barriga, com muito medo, mas a minha médica falou que não vamos suspender. E eu penso: por que limitar o uso? Existem medicações realmente nocivas que continuam sendo vendidas sem restrições. Acho um retrocesso muito grande da sociedade médica, porque são eles que deveriam cuidar de nós. Essa negligência sentencia o paciente a não melhorar de uma condição que talvez pudesse ser revertida”, comenta.
Outra paciente que se beneficia do uso da cannabis medicinal é Yamoni Sartori, de 17 anos. Ela é diabética e em 2020, depois de dois surtos, também foi diagnosticada com neuromielite óptica. O uso do canabidiol foi um alívio para a adolescente e para a mãe, Alexandra, que conta o sofrimento vivido pela família até ter um medicamento eficiente prescrito.
“Ela teve alergia à carbamazepina e ficou 15 dias na UTI, a terceira vez em menos de um ano. Sem o medicamento para controlar a doença, ela tinha os espasmos que não nos deixavam dormir. Foi no hospital que falei com outros pais que têm uma filha com NMO e eles me contaram sobre a cannabis. Fui pesquisar e quase desisti pelo valor e pela dificuldade de encontrar, mas lutei. Quero o bem da minha filha”, diz.
Hoje, Yamoni usa um medicamento com canabidiol para reduzir os espasmos musculares, ansiedade e dores. A mãe dela irá entrar com uma liminar para conseguir dar continuidade ao tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Minha filha usa canabidiol para ter qualidade de vida, e isso não pode ser negado a ninguém”, afirma Alexandra.
Em uma nota de esclarecimento divulgada no dia 20/10, o CFM reafirmou o compromisso com a prática médica segundo os princípios éticos e de excelência, compreendendo os anseios de pacientes e seus familiares com respeito ao tratamento de doenças. O conselho também informou que as decisões são tomadas de modo imparcial.
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