“Programas de imunização precisam se atualizar”, diz diretor da Opas
Diretor da Opas conversou com o Metrópoles sobre a hesitação vacinal, mudanças climáticas e o certificado de país livre do sarampo
atualizado
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O Brasil é novamente um país livre do sarampo, rubéola e rubéola congênita. O reconhecimento foi feito na terça-feira (12/11), durante a passagem do diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Jarbas Barbosa, pelo Brasil.
O sarampo, em especial, preocupa por ser uma doença grave, altamente transmissível, que afeta principalmente crianças pequenas, e pode levar à morte.
“O Brasil fez bem a tarefa de casa. Muita gente acha que o sarampo não é tão grave, mas principalmente crianças de populações mais vulneráveis ou que têm um problema no sistema imunológico podem morrer por causa da doença”, afirma o diretor da Opas em entrevista ao Metrópoles.
Barbosa lembra do poder das vacinas no controle de doenças importantes. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que mais de 150 mil vidas foram salvas nos últimos dez anos graças a programas de imunização.
Ele reconhece que ainda existem muitos desafios, como uma comunicação clara e direta dos governos com a sociedade para combater a hesitação vacinal, além de políticas públicas que facilitem a chegada das vacinas a quem precisa delas.
“Acredito que os programas de imunização precisam se atualizar. A vacinação é uma das maiores conquistas da saúde pública mas, infelizmente, ela tem sido alvo de grupos que divulgam notícias falsas”, afirma.
O diretor da Opas também falou sobre outros temas relevantes, como a dengue, os impactos das mudanças climáticas na saúde e os principais desafios da Opas para 2025. Confira:
Leia a íntegra da entrevista com o Jarbas Barbosa, diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas):
Metrópoles: Podemos dizer que o sarampo foi erradicado no território brasileiro? O que o Brasil fez para chegarmos a receber o selo novamente?
Jarbas Barbosa: Primeiro, tem uma diferença entre erradicação e eliminação. Quando a gente erradica uma doença — como no caso da varíola —, não precisa mais se preocupar, porque ela desapareceu no mundo inteiro. Então a gente não precisa vacinar, nem ter vigilância.
No caso do sarampo, a gente fez uma eliminação. Ou seja, como ainda existem muitos casos de sarampo no mundo (na Europa, Ásia e África), toda semana vamos receber casos importados de turistas da nossa região (Américas) que vão a esses países, ou de turistas desses países que vêm. Por isso é uma eliminação.
A gente não tem mais transmissão autóctone em nenhum país das Américas, mas nós vamos receber casos importados. Por isso é importante manter a vigilância, com capacidade de detectar rapidamente quando chega um caso importado, e a vacinação contra o sarampo deve ser elevada e homogênea. Essa é a garantia que a gente tem que continuaremos livre do sarampo.
Metrópoles: A gente fez bem a tarefa de casa?
Jarbas Barbosa: Sim. O Brasil recebeu o certificado de eliminação do sarampo, rubéola e rubéola congênita. O sarampo é uma doença grave, como você falou. Muita gente acha que o sarampo não é tão grave, mas principalmente crianças de populações mais vulneráveis ou que têm problema no sistema imunológico podem morrer quando têm sarampo.
No caso da rubéola, se uma mulher grávida contrair a rubéola, o bebê pode nascer com doenças gravíssimas (como cegueira e doenças cardíacas) ou pode ser uma causa importante de aborto espontâneo.
Metrópoles: Em relação à vacinação, percebemos ainda uma grande hesitação, apesar dos avanços feitos recentemente. Como o senhor avalia o assunto? O que é preciso fazer para aumentar a cobertura vacinal no Brasil?
Jarbas Barbosa: Eu acredito que os programas de imunização precisam se atualizar. A vacinação é uma das maiores conquistas da saúde pública. Nós temos uma estimativa recente, feita pela Organização Mundial da Saúde, de que graças à vacinação, salvamos mais de 150 mil vidas só nos últimos dez anos. Isso demonstra o poder imenso da vacinação. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade mudou, as cidades mudaram.
É muito importante, primeiro, ter uma comunicação direta, aberta, transparente e escutar as dúvidas das famílias. Porque, muitas vezes, não é que a família seja contra a vacinação, mas ela não está segura. Por que é que ela precisa continuar vacinando contra pólio, por exemplo, já que não temos casos de pólio na região das Américas há mais de 30 anos? A vacina é segura, eficaz, a criança pode tomar duas ou três vacinas ao mesmo tempo?
Então, os profissionais de saúde precisam estar muito bem informados, treinados para prestar essa informação às pessoas. E, ao mesmo tempo, é importante combater as notícias falsas. Infelizmente, as vacinas têm sido alvo de grupos que divulgam notícias falsas e avaliar quais são as barreiras que as pessoas têm e remover essas barreiras é importante Por exemplo, em países de economia informal, uma mãe ou pai hoje, com todas as vacinas que foram incorporadas no sistema de saúde, precisa levar a criança 10 ou 12 vezes a um posto de saúde no primeiro ano de vida.
Se essa pessoa chega no posto de saúde naquele dia e o profissional de saúde não está ou não tem a vacina ou não pode abrir o frasco da vacina ou não tem informação adequada, essa pessoa talvez não volte. Então, é muito importante adotar estratégias: abrir postos de saúde de vacinação nos finais de semana, levar a vacinação a mercados e feiras.
Nós desenvolvemos uma estratégia que ajudou muito o Brasil, hoje com o reconhecimento da própria ministra Nísia, que chama microplanificação e ajuda os países, no caso do Brasil, os estados e municípios, a identificar onde estão os não vacinados. Aí, você pode tentar entender porque eles não estão vacinando e desenvolver estratégias adequadas para remover as barreiras e garantir o acesso deles às vacinas.
Metrópoles: É só pra gente explicar. Quando o senhor fala, não pode abrir frascos, é porque às vezes um frasco tem dez doses e você não pode abrir e guardar novamente?
Jarbas Barbosa: Exatamente. A gente tem trabalhado muito com os produtores de vacinas, principalmente as vacinas novas e mais caras, para ter essas embalagens de seringas preenchidas — uma única dose já na seringa —, o que evita o desperdício.
Porque muitas vezes a vacina é fabricada com cinco doses no frasco e às vezes o profissional de saúde fica achando que vai desperdiçar porque só vai vacinar aquela criança e vai ter que jogar fora depois as outras quatro doses que tem no frasco.
É preciso treinamento, contato com a comunidade, convidar a comunidade a vir, ir nas escolas, olhar a caderneta de vacinação das crianças para ver quem não está com o calendário em dia.
Metrópoles: Nesse ano, vivemos a pior epidemia de dengue das últimas décadas e ocorreram casos em países vizinhos. Estados Unidos e Europa também relataram casos. Existe a possibilidade de a doença se espalhar por outras regiões do globo? Qual é o nível de preocupação da OMS sobre o assunto?
Jarbas Barbosa: Nós da Organização Pan-Americana da Saúde somos bastante preocupados com a dengue, porque é um problema grave — principalmente na faixa tropical e subtropical do nosso hemisfério americano. No ano passado, nós tivemos mais de 6,5 milhões de casos, já foi um recorde. Esse ano, já temos mais de 11 milhões de casos.
Uma combinação provável de algumas condições estruturais, ou seja, a maneira rápida como a urbanização ocorreu na América Latina, levou cidades que não têm a infraestrutura adequada a esse cenário. O lixo não é recolhido adequadamente, as pessoas não têm acesso à água 24 horas, nos sete dias da semana, então todos têm que armazenar água. Em alguns países no mundo não existe caixa d’água, por exemplo. Nos Estados Unidos e em vários países da Europa, as pessoas nem sabem o que é uma caixa d’água.
Na América Latina, infelizmente, todos têm que armazenar água. As pessoas com melhores condições armazenam em caixa d’água fechadas, corretas. Já as pessoas que vivem em comunidades muito pobres armazenam água como podem. Eu creio que esses determinantes sociais terminam impactando muito.
Há também o problema do clima. Nós vivemos o El Ninõ, e todos os anos que a gente tem o El Ninõ há um crescimento grande do número de casos. Dessa vez foi um crescimento recorde, principalmente por uma combinação talvez do El Ninõ com alguns impactos das mudanças do clima já se manifestando.
Nos Estados Unidos e na Europa pode haver casos mas, sem dúvida nenhuma, lá não há condições de ter uma transmissão sustentada grande como temos em países tropicais, porque lá as cidades têm uma infraestrutura urbana muito boa e o próprio clima não favorece a proliferação do mosquito.
Mas a dengue é uma preocupação. Nós ainda não temos uma boa vacina para controlar completamente a doença. Temos uma vacina já no mercado, que inclusive oferecemos pelo Fundo Rotatório da Opas (um mecanismo de compra para os países da América Latina e Caribe), mas essa vacina ainda não é capaz de eliminar a dengue.
Nós vamos ter que continuar, primeiro, controlando o vetor. E aí vai um chamado às famílias: se cada família perder 15 minutos por semana, ela consegue identificar onde tem potenciais focos de criadora do mosquito. Qualquer recipiente que possa acumular água de chuva pode gerar um criadouro do mosquito.
Então é importante que as famílias façam a sua parte, que as prefeituras façam a sua parte porque tem muito terreno baldio, praças, parques, comércio, que podem também se transformar em criadouros do mosquito. E, ao mesmo tempo, preparar os serviços de saúde.
Metrópoles: Ainda falando sobre mudanças climáticas, os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde têm sido muito comentados em diferentes fóruns de discussões. Já há efeitos concretos que vocês estão vendo? Como os países devem se organizar para mitigar o impacto dessas mudanças na saúde da gente?
Jarbas Barbosa: Tem impactos muito fortes. Por exemplo, as mortes por ondas de calor nas Américas como um todo cresceram 160% em uma década. Nós temos impactos diretos também com eventos climáticos que destroem a infraestrutura de saúde.
A Opas, trabalhando conjuntamente com os países do Caribe — uma das regiões mais sensíveis a furacões e outros eventos climáticos —, fez um projeto de apoiar 50 hospitais do Caribe a se tornarem hospitais resilientes quando há um furacão. O único edifício público que segue funcionando quando passa o furacão é o hospital que recebeu esse pacote de intervenções.
E nós temos também outros efeitos. Doenças transmitidas por vetores — você citou a dengue, mas tem também a malária e outras. Nós temos o efeito das secas e das inundações que comprometem a produção agrícola e aí levam à insegurança alimentar a migrações. Então é um impacto importante e o setor da saúde precisa estar presente.
Nós estamos com a boa expectativa da COP 30, que será realizada no Brasil em 2025, na cidade de Belém, no Pará. Nós esperamos que se tenha uma boa discussão sobre a saúde e as mudanças climáticas, para que a saúde também seja parte da preparação. Nós estamos apoiando os países a desenvolverem melhores sistemas de vigilância, integrando dados de previsões de clima, dados de alerta precoce, mas também medidas de mitigação de preparação para diminuir esse impacto muito importante que as mudanças climáticas já produzem hoje.
Metrópoles: Quais são os principais desafios da OPAS para 2025?
Jarbas Barbosa: Primeiro, continuar o processo de fortalecimento da atenção primária de saúde. Uma atenção primária renovada e fortalecida que seja resolutiva, que resolva os problemas das pessoas perto delas, que elas não precisem se deslocar horas e esperar em filas para, por exemplo, diagnosticar e tratar a hipertensão, diabetes, tuberculose, HIV ou dengue.
A atenção primária renovada e fortalecida também pode ser um bom elemento para organizar melhor o acesso das pessoas aos níveis de atenção mais complexa — a atenção hospitalar, cirurgias —, que hoje em dia nós temos um problema no mundo inteiro que a pandemia agravou, que é a dificuldade de acesso. As filas de espera são um problema no mundo inteiro e a gente tem apoiado o país a desenvolver estratégias para resolver.
Eu diria que essa é um uma prioridade e que envolve também a própria questão dos recursos humanos. Como treinar e capacitar os recursos humanos para que a gente tenha médicos, enfermeiros, dentistas e psicólogos capacitados a atuar nos centros de atenção primária e nos centros especializados, utilizando inclusive recursos já disponíveis, como a telemedicina, telessaúde, para melhorar a resolutividade da atenção primária, melhorar a qualidade do serviço.
Uma segunda questão importante é a eliminação de doenças. A gente segue querendo liderar no mundo nesse esforço. Temos a iniciativa de eliminar 30 doenças até o ano de 2030. Uma delas, por exemplo, é o câncer do colo do útero. Ainda morrem 40 mil mulheres por ano nas Américas de câncer do colo do útero.
Nós já temos uma boa vacina contra o HPV, que é capaz de eliminar o vírus, que é o causador do câncer cérvico-uterino. Estamos buscando baratear o preço de um novo teste, que pode ser de autocoleta, como se fazia com a Covid-19, e tratamentos disponíveis na atenção primária perto da casa dessas mulheres. Com isso, a gente pode reduzir muito a mortalidade e conseguir a eliminação.
Isso vale para várias outras doenças. Para o HIV/AIDS, por exemplo, ampliar o uso do Prep, o tratamento pré-exposição que, sem dúvida nenhuma, é a ferramenta mais eficaz para reduzir a velocidade de transmissão em alguns grupos mais vulneráveis, como jovens, homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, profissionais do sexo. E várias outras doenças que nós estamos apoiando os países a acelerarem o uso de novas tecnologias.
Tem um terceiro tema importante para todos os países hoje em dia, que é a transformação digital. Nós temos uma aliança importante com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Estamos apoiando os países a fazerem essa transformação. Utilizar prontuários eletrônicos, ter registros individuais eletrônicos das vacinas, para que a gente saiba quem é a criança que foi vacinada. Utilizar mais a telessaúde e a telemedicina para melhorar a qualidade da atenção.
Creio que esses têm sido alguns dos projetos prioritários, além de alguns que eu já mencionei, como fortalecer a capacidade de produção na região, porque a pandemia provou que a gente não pode ficar dependendo só de importar.
Em resumo, essas são as prioridades, os grandes desafios que a gente tem para 2025. E torcendo para que os países consigam ter o consenso sobre o novo acordo de pandemias, que vai ser discutido e aprovado até maio de 2025, na Assembleia Mundial da Saúde, que nos deixem melhor preparados, resolvendo um problema gravíssimo que foi a falta de acesso equitativo às vacinas e outros produtos durante a pandemia.
Metrópoles: O senhor falou da eliminação de 30 doenças até 2030. Como estamos nesse caminho? Faltam cinco anos.
Jarbas Barbosa: Faltam cinco anos. Por isso que a gente está acelerando, mas temos tido muitos avanços. Esse ano eu entreguei a certificação da eliminação da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatites de Chagas à Jamaica, Belize e São Vicente e Granadinas. Certificamos a Belize de eliminar a malária. O Suriname está perto de receber o certificado porque já está há três anos sem nenhum caso de malária. Na Colômbia, onde eu estive, o ministro da Saúde lançou um plano de eliminação de 22 doenças.
Nós estamos nos movendo. Mesmo que a gente não alcance o objetivo de 2030, o importante é colocar em movimento, é garantir uma tendência de que se não vai ser em 2030 para algumas doenças, vai ser em 2031 ou 2032.
O Brasil tem uma contribuição grande. O país recebeu agora o certificado de eliminação do sarampo da rubéola e rubéola congênita, mas ontem recebeu também o certificado de eliminação da filadélfia linfática, que era uma doença que ainda tinha focos no meu estado natal, que é Pernambuco, mas já está há mais de três anos sem nenhum caso, que foi em 2017. Além disso, é feito todo um inquérito populacional para certificar que a doença foi eliminada.
O Brasil está muito perto também de eliminar outras doenças, como o tracoma, e nós temos uma boa expectativa de que a região está se movendo numa velocidade muito importante.
A eliminação dessas doenças é também uma contribuição do setor da saúde para a eliminação da pobreza e da desigualdade. Essas doenças são muito mais prevalentes em populações mais pobres. E ao adoecer dessas doenças, essas famílias se tornam ainda mais pobres.
Uma mulher que tem um câncer de colo de útero vai parar de produzir, se submeter a tratamento. Dessas 40 mil que morrem, nós vamos ter famílias com filhos órfãos. Muitas vezes essa mulher era o único adulto da casa a ter uma renda. Então é também uma contribuição importante do setor da saúde para a eliminação da pobreza e da desigualdade.
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