De hipnose à constelação familiar: conheça os novos tratamentos do SUS
Neste mês, a rede pública de saúde ganhou 10 terapias integrativas. Mesmo vista como vanguardista, a política está longe de ser unanimidade
atualizado
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Desde que o Ministério da Saúde anunciou, no último dia 12, a inclusão de 10 novas práticas alternativas no Sistema Único de Saúde (SUS) que envolvem de hipnose à constelação familiar, médicos, entidades de classe e pacientes debatem em torno de um consenso sobre a validade – ou utilidade – das técnicas numa realidade de saúde pública marcada pela falta de leitos e precariedade de atendimentos.
Na teoria, qualquer cidadão agora pode se deparar com um receituário de aromaterapia ou, ainda, uma lista de tons calmantes (cromoterapia) logo abaixo do analgésico padrão ou da indicação de anti-inflamatórios.
As terapias anunciadas pelo ministro Ricardo Barros durante um congresso de práticas integrativas organizado pela própria pasta, no Rio de Janeiro, se juntam a outras 19 que já eram ofertadas por meio de uma política nacional criada em 2006, ainda no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até 2017, eram cinco, incluindo velhas conhecidas da população, como acupuntura e homeopatia. As demais foram incorporadas por Barros entre o ano passado e este.
De um lado, o ministério argumenta que a ampliação da Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares (PNPIC) responde às expectativas e premissas da Organização Mundial da Saúde (OMS) em resgatar saberes tradicionais e aliá-los ao conhecimento científico médico possibilitando melhor tratamento ao enfermo. “É tirar do sistema a lógica da doença e trazer para o bem-estar do paciente”, resume Daniel Miele Amado, coordenador do programa.
Em 2014, a OMS atualizou seu relatório sobre o uso e incentivo de práticas tradicionais e reelaborou estratégias para que os países incrementem tais recursos até 2023. A organização espera alcançar essa meta por meio de três pilares: construção de conhecimento e formulação de políticas nacionais, fortalecimento de efetividade e segurança para pacientes, e promoção de alcance. “A medicina tradicional de qualidade, segurança e eficácia comprovada contribui para o objetivo de assegurar às pessoas acesso ao cuidado”, diz a entidade no documento.
É sobre as tais segurança e eficácia que reside, hoje, o grosso dos desencontros entre governo e associações médicas acerca do tema. Reserva de orçamento público e aplicação prática da política nos centros de saúde também são alvos das rusgas. Há quem argumente, por exemplo, que a ampliação da lista não passe de encenação, com pouca ou nenhuma chance de chegar à população.
Dias depois do anúncio de que o PNPIC não apenas continuava vivo como ganharia nomes alheios ao glossário de tratamentos da maioria dos pacientes, como ‘“imposição de mãos” e “bioenergética”, o Conselho Federal de Medicina emitiu uma nota condenando a atitude do ministério.
Segundo o CFM, as práticas “não apresentam resultados e eficácia comprovados cientificamente” e que, inclusive, seu uso e prescrição por médicos são proibidos pelo código de ética da profissão.
Embora pouco difundidas em consultórios, algumas práticas, como a constelação familiar, já são usadas em outras esferas públicas, inclusive para mediação de pendengas jurídicas, por exemplo, em divórcios ou cobranças. A técnica consiste numa espécie de jogo de encenação espontânea das relações familiares, a fim de trazer à superfície a origem dos conflitos.
O Metrópoles questionou o Ministério da Saúde, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Conselho Federal de Medicina, e mostra a polêmica em três versões:
O Ministério da Saúde fala
Daniel Miele Amado
Coordenador da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
O critério de escolha das práticas incorporadas
As práticas integrativas estão disponíveis no SUS desde sua criação, em 1988, por meio das resoluções do CIPLAN (Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação, cujos documentos 4, 5, 6, 7 e 8 estabelecem normas e diretrizes para atendimento em homeopatia, acupuntura, termalismo e fitoterapia), antes até do surgimento da PNPIC. A política nacional apenas deu início a um processo de monitoramento e de melhoramento do acesso e da qualidade.
As terapias oferecidas hoje já têm validação nacional. A maior parte tem reconhecimento de diferentes conselhos. A imposição de mãos, por exemplo, é uma técnica usada por profissionais da enfermagem há bastante tempo, e agora foi incorporada (ao SUS). A hipnose já é aceita pelos conselhos de odontologia e de fisioterapia. A mesma coisa a terapia floral, pelo conselho de farmácia. Essas técnicas têm um número consistente de pesquisas sobre seus benefícios.
A divulgação e a garantia de acesso do cidadão
A própria ação (de implementação) faz a divulgação. Mas isso também depende das ações locais. Quem vai decidir sobre a adesão são os gestores locais, de acordo com a organização de seus serviços e profissionais. Algumas secretarias de saúde, como a do Distrito Federal, já possuem uma lista de práticas disponíveis e local de oferta.
O enfrentamento do CFM sobre a adesão das práticas no SUS
(O repúdio do conselho) é muito baseado no desconhecimento. A gente entende a posição do CFM de preservar a prática médica. Aconteceu isso, inclusive, com a acupuntura. O conselho chegava a processar médicos acupunturistas por charlatanismo. Hoje, eles defendem que a prática seja realizada apenas pelo médico.
Por que práticas complementares?
Atualmente, grupos de pesquisa dentro e fora do Brasil estudam diversas práticas integrativas e já temos resultados suficientes que atestam os benefícios e mostram como elas ajudam a organizar todo o sistema.
Elas melhoram a qualidade de vida dos pacientes, faz com que precisem de menos medicamentos e exames complexos e isso traz, inclusive, uma economia ao sistema de saúde. Você sai de uma lógica de política voltada à doença, para uma de promoção da saúde. Temos dados de Florianópolis (SC), por exemplo, que mostram já uma redução de até 40% do uso de anti-inflamatório e analgésico. É uma diminuição muito significativa de remédio.
Sobre o medo de que substituam tratamentos convencionais
Quem tem realizado essas práticas são profissionais de saúde. Eles vão indicá-las segundo sua avaliação. De forma alguma, farão isso de maneira irresponsável.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) fala:
Carmen de Simoni
Representante da Abrasco no DF:
Sobre a reação do CFM ao aumento da política:
Essa reação não é de agora. Isso vem de outros tempos. Eles dizem que não existem estudos sobre isso, mas temos mais de 60 mil estudos. Não tem no Brasil porque aqui não há investimento para pesquisa. Mas as práticas complementares nos remontam a coisas muito importantes. A reação do Conselho Federal de Medicina é até esperada. Mas é um desserviço à nação.
Não é porque o CFM não reconhece que outros conselhos não podem reconhecer. O mundo todo tem olhado para isso. Essa incorporação (aos serviços públicos de saúde) é algo que tem acontecido no mundo inteiro, baseada em recomendações da OMS e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS).
Validade das práticas
Estimulando a recuperação natural do organismo de uma enfermidade, automaticamente você vai diminuindo o complexo farmacológico. É verdade quando o Ministério da Saúde fala em redução do uso de anti-inflamatórios.
Temos o caso do município de Campinas, que calcula uma economia de 80 mil comprimidos por ano. Fora bem-estar, socialização, uso de antidepressivos e medicamentos redutores do sono. Se fossem práticas tão esquisitas assim, não estariam já nos hospitais privados de referência, como Albert Einstein e Sírio-Libanês. Estamos oportunizando as pessoas para que tenham acesso a isso no público.
Sobre priorização de recursos
A crítica da Abrasco é para outras coisas (em comparação ao CFM). Essas práticas foram incorporadas sem nenhum investimento. O gestor que quiser incluir isso no seu serviço não tem para tal um financiamento específico. O Ministério não investe um centavo. Não existe política pública sem investimento. A PNPIC nasce sem investimento e segue sem investimento.
O Ministério diz que isso existe em 3 mil municípios porque os profissionais fazem por conta. Se eu sou médica e sou também acupunturista ou homeopata, eu posso usar desse conhecimento na minha prática alopática normal. A política nacional efetivamente existe. Não é fachada. Só não tem investimento, como tem a da saúde do homem, por exemplo.
Em outras palavras, é como se dissessem “agora podem fazer o que já fazem”. A saúde pública do Brasil, no papel, está muito alinhada com as iniciativas de vanguarda responsáveis que vemos no mundo. Mas cabe a crítica, sim. Nem tem investimento para pesquisa, ensino e gestão dessa política. E não adianta realocar recursos de outras áreas, porque não existe.
O Conselho Federal de Medicina fala:
Carlos Vital
Presidente do CFM
Por que não?
Essas práticas, chamadas de integrativas e complementares, não têm comprovação científica. Por conseguinte, não há resolubilidade nessas atividades. E isso, como consequência, traz prejuízo para o orçamento do SUS, que já é pouco em relação à demanda da população. Se utiliza-se esse orçamento que já é pouco em áreas sem comprovação científica e que não se traduzem em solução, estamos em uma situação paradoxal a uma gestão competente. É preciso aplicar os recursos em áreas que provem sua resolubilidade.
Sobre o uso rotineiro das práticas por alguns médicos
Os médicos atuam de acordo com as regulamentações dos seus códigos de ética. Os profissionais brasileiros não podem usar na prática da medicina nada que não tenha reconhecimento científico. Se eles já fazem isso, não é de conhecimento do Conselho Federal de Medicina. Só poderiam utilizar aquilo que tem reconhecimento científico. O que não significa que os leigos não façam. Isso fica para os não-médicos.
Sobre o medo de que as terapias complementares substituam as convencionais
Esse risco pode existir. As pessoas convictas de que uma prática alternativa pode ser a solução do seu problema, vai se esquecer ou desprezar outros procedimentos terapêuticos que tenham conhecimento científico.