Conhece o leite A2? Ele pode ser a solução para sua alergia ao produto
O leite – de vaca mesmo – contém um tipo de proteína que, dizem cientistas, não causa alergia. Bebida já é produzida em fazendas do DF
atualizado
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Imagine amar leite e ter de recusar um brigadeiro ou ignorar a existência do pão de queijo no café da tarde. Sentir cheiro de bolo quente e se retirar da cozinha. Dispensar o rodízio de pizza no fim de semana. Assim vivem os cerca de 350 mil portadores de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) no Brasil, pelas contas da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia.
Agora imagine, ainda que alérgico, se esbaldar com tudo isso, inclusive um copo cheio de leite puro – de vaca, não de castanha, arroz, coco ou similares – e não sentir desconforto ou sintoma algum. Esse sonho está em vias de virar realidade no Brasil, desde que ciência, produtores e medicina começaram a explorar um tipo de bebida diferente da que consumimos em supermercados (até agora): o chamado leite A2.
Em outros países – Nova Zelândia e Austrália, principalmente –, ele não apenas já está nas prateleiras desde o início dos anos 2000 como tem crescido em faturamento. Com rótulos que vendem a promessa de “leite aprovado para alérgicos”, os produtos são comercializados pelo dobro do preço das versões “tradicionais” e têm representado ganhos gordos aos fabricantes: em 2016, a a2 Milk detinha quase 10% do mercado de leite da Austrália e esperava aumentar suas receitas em nada menos que 126% até o fim daquele ano.
No Brasil, o produtor agropecuário Eduardo de Oliveira só ouviu falar no tal leite há pouco mais de um ano, quando participou de um evento do setor, no interior de São Paulo. Em casa, na época, tinha uma bebê doente. Maria Eduarda, hoje com 3 anos, foi diagnosticada com APLV. Chegou a ter nove otites em 12 meses, fora as cólicas e diarreias. A síndrome pode ter sintomas diferentes a depender do grau de sensibilidade do alérgico – inclusive choques anafiláticos.Leite (de vaca mesmo)
“A nossa produção de leite aqui estava parada há anos. Mas, eu tinha todo o material e resolvi testar”, resume o fazendeiro. “Todo mundo me chamava de louco. Dizia que ficaria caro e não teria saída comercial alguma”, completa.
Ao contrário do que pode parecer, a produção do leite A2 não tem nada de especial: não passa por processos de “limpeza”, adição de enzimas nem é uma versão artificial da bebida. É simplesmente leite de vaca. Saído da vaca. Como outro qualquer. Contém, inclusive, lactose – o que faz dele seguro para alérgicos, mas não para intolerantes.
O que o difere do leite comum é justamente a proteína causadora da discórdia. A maioria dos leites de mercado contém tanto a proteína beta-caseína A1 quanto a A2. A primeira é responsável pela maior parte das alergias ao leite de vaca. A diferença está no DNA dos bovinos: há raças que produzem apenas A1, animais que têm ambas e aqueles que produzem exclusivamente A2 – estes, tratados como descoberta de ouro da indústria láctea e esperança em garrafa a adoradores da bebida com sistemas imunológicos resistentes ao amor.
Para Maria Eduarda, deu certo. Eduardo encomendou um teste genético e certificou-se de que suas vacas, da raça Sindi, produziam o leite que pesquisadores diziam ser seguro a alérgicos. Os sintomas da menina sumiram. Até “Toddynho” numa versão feita com o soro do leite A2 e cacau a pequena passou a tomar. “Hoje, a família toda consome. Mesmo quem não é alérgico diz que se sente melhor com esse leite. Esse, sim, é o verdadeiro leite”, gaba-se o fazendeiro.
Eduardo mantém hoje uma modesta produção de cerca de 90 litros por dia em sua fazenda, na Cidade Ocidental (GO). Além dele, apenas outro empreendedor nos arredores do Distrito Federal produz o leite – pelo menos com a certeza do teste genético das vacas. Ele distribui o alimento por encomenda a famílias com histórico de alergia ou por meio de alguns médicos alergistas e pediatras da cidade. Cada garrafa sai a R$ 7.
Como no Brasil as pesquisas sobre segurança médica ainda engatinham, Eduardo não pode apelar para o marketing da segurança alérgica para colocar seu produto no mercado. Mas, se tudo der certo, pretende espalhar suas garrafas de leite e queijos artesanais, ainda neste ano, em pequenas lojas e comércios. Para isso, espera andar a burocracia pelo selo de certificação do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi).
Esperança engarrafada
Uma dessas clientes fidelizadas já de saída é Márcia Negreiros, mãe de um pequeno alérgico de 2 anos e 8 meses de idade. O menino foi diagnosticado nos primeiros dias de vida com alergia severa, depois de sujar a fralda com sangue. O diagnóstico colocou Márcia não apenas em desespero inicial, como em uma dieta rígida. “Passei meses a arroz com ovo. Achei que fosse virar uma galinha”, brinca a mãe.
Passados os primeiros meses de restrição absoluta – a que médicos chamam de “enfrentamento” –, quando chegou o tempo, Márcia decidiu reintroduzir a proteína do leite pelo tipo A2, após ter conhecido o produto em um grupo de pais de alérgicos no WhatsApp. A decisão teve o aval da equipe médica que acompanhava o pequeno.
“Na primeira noite depois que ele teve contato com o leite, acordou 21 vezes com cólica. Mesmo assim, os médicos recomendaram que a gente insistisse”, conta Márcia. Hoje, todos os produtos com leite que o pequeno consome, mesmo que ainda sob vigília, vêm da fazenda de Eduardo. A expectativa é que, até completar 3 anos, o menino esteja livre da APLV e liberado para se esbaldar em leite com chocolate, se quiser.
Mercado borbulhando
O sucesso da “novidade” na gringa fez, ainda que tardiamente, com que pesquisadores brasileiros se mobilizassem a fim de introduzir no mercado o tal leite especial. Em Minas Gerais, a Embrapa Gado de Leite já estuda formas de melhorar rebanhos para que eles passem a produzir apenas o leite A2. No DF, especialistas da instituição têm se dedicado a estudar melhoramentos genéticos de rebanhos de leite – o que inclui testar o DNA das vacas para saber qual o tipo de leite produzem, ainda que sem pesquisa específica sobre.
A ideia é que a “rotulagem” estimule os produtores a explorarem o mercado que se descortina pela frente. “O que nós fazemos é tirar provas da produção de leite a pasto e avaliar as suas várias características econômicas”, explica o pesquisador Carlos Frederico Martins, da Embrapa Cerrados.
“O que nós falamos para o produtor dono da amostra, por exemplo, é ‘olha, pelos testes, o seu animal tem 90% de chance de produzir um leite A2, e você pode ser bonificado por isso em um nicho de mercado que está nascendo. A ideia é que eles façam os melhoramentos genéticos em seus rebanhos se quiserem comercializar isso no futuro”, comenta Martins.
O pesquisador usa a palavra “futuro” porque o país ainda não tem legislação específica sobre produção e venda de leite e derivados do tipo A2, com rótulo que aponte a segurança do produto a alérgicos. “O Brasil não possui uma estrutura adequada para processar o leite garantindo que não haverá mistura ou contaminação por A1. Mas a ideia é estimular essa cadeia. É o que está borbulhando agora pelas fazendas. Os produtores estão ligados”, diz.
O mesmo otimismo em relação ao mercado, no entanto, não contagiou o médico gastroenterologista Columbano Junqueira Neto, da Federação Brasileira de Gastroenterologia. Segundo o especialista, o leite A2 pode, de fato, beneficiar adoradores de leite alérgicos à proteína beta-caseína A1. Porém, eles representam um nicho de mercado minúsculo.
“Ainda se fosse em uma frequência absurda, mas você não consegue nem comparar com a da intolerância à lactose, por exemplo, que responde pela maior parte das intolerâncias ao leite. Essas pessoas não se beneficiariam de nada com o leite A2”, pondera o médico.
Ainda de acordo com o especialista, é provável que mais de 50% da população mundial tenha algum nível de intolerância ao leite – o que poderia levar muita gente a comprar por engano produtos rotulados como “antialérgicos”.
“O normal é que o ser humano pare de produzir lactase [enzima que “quebra” a lactose na digestão] à medida que envelhece, porque para de mamar”, explica Junqueira Neto. “Acreditamos que algumas pessoas tenham sofrido uma mutação para continuar produzindo essa enzima ao longo da vida. Essas são as que toleram bem o leite”, resume.
Intolerantes à lactose não podem consumir nenhum tipo da bebida, porque ela está presente em qualquer leite de origem animal. Já alérgicos à proteína se dão bem com outros tipos, como o de cabra e de camela. “Esses leites todos contêm apenas a beta-caseína A2”, diz o médico. “Há um nicho de mercado? Sim. Mas a população alvo não é grande. O mercado quer vender, mas não pode usar informação falsa”, alerta.