metropoles.com

Como o acúmulo de gordura no fígado se tornou uma epidemia global

No Brasil, dados citados pela Sociedade Brasileira de Hepatologia indicam que 20% da população geral possui gordura no fígado

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Sebastian Kaulitzki/Science Photo Library/Getty Images
ilustração colorida mostra orgãos do corpo humano, com fígado em destaque na cor amarela
1 de 1 ilustração colorida mostra orgãos do corpo humano, com fígado em destaque na cor amarela - Foto: Sebastian Kaulitzki/Science Photo Library/Getty Images

* Artigo escrito pela endocrinologista Maria Fernanda Barca, integrante do grupo de Tireoide do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O texto foi originalmente publicado na plataforma de divulgação científica The Conversation Brasil.

– Eu sou seu fígado. Estou sendo prejudicado pelo excesso de gordura infiltrado entre as minhas células. Por favor, cuide disso antes que eu comece a falhar.

Se pudesse, o fígado de uma a cada três pessoas faria esse apelo. Estima-se que entre 25% e 30% da população adulta mundial tenham algum grau de gordura no fígado, condição chamada de esteatose hepática ou doença esteatótica associada à disfunção metabólica (sigla MASLD, em inglês).

No Brasil, dados citados pela Sociedade Brasileira de Hepatologia indicam em torno de 20% de esteatose hepática na população geral. Quando pacientes diabéticos são avaliados pelo ultrassom em relação à presença de esteatose, 70% são portadores da doença.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) se preocupa com o aumento de casos de esteatose hepática, especialmente em países com altos índices de obesidade e diabetes, caracterizando uma epidemia global e silenciosa que já afeta populações mais jovens.

A doença costuma progredir em silêncio, e agrava os riscos à saúde com o passar do tempo. O fígado, a maior glândula do corpo, desempenha funções essenciais como filtrar o sangue, eliminar toxinas, produzir bile, armazenar vitaminas e minerais, regular a coagulação sanguínea e metabolizar hormônios e medicamentos.

O excesso de gordura afeta essas funções, causando inflamação e predispondo o órgão a problemas graves como esteato-hepatite, fibrose, cirrose e câncer.

Esse acúmulo pode ocorrer por várias razões. Uma delas é a entrada excessiva de ácidos graxos no sangue, provenientes da dieta ou da oxidação da gordura. Ácidos graxos são componentes básicos de lipídios, que são moléculas essenciais para armazenar energia e formar estruturas celulares, como as membranas.

Outra via é a produção aumentada de gordura pelo fígado a partir da glicose, comum em pessoas com resistência à insulina (hormônio que leva a glicose para dentro das células) ou ingestão de carboidratos em excesso. Problemas nas mitocôndrias (as “usinas” de energia das células) também diminuem a queima de gordura, favorecendo o acúmulo.

As alterações na composição da microbiota intestinal (a disbiose) também podem prejudicar a produção de ácidos graxos e aumentar a permeabilidade intestinal, facilitando a entrada de toxinas que inflamam o fígado. A microbiota é o conjunto de microrganismos (como bactérias, vírus e fungos) que habitam diversas partes do corpo, especialmente o intestino. Além disso, mudanças na microbiota afetam o metabolismo de gorduras e açúcares, agravando a resistência à insulina.

Quem está mais vulnerável?

Os grupos de maior risco incluem indivíduos com sobrepeso ou obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e dislipidemias (alterações das diversas frações de gordura no sangue, como colesterol e triglicérides).

Nota-se também que a síndrome dos ovários policísticos, a apneia obstrutiva do sono e algumas condições hormonais, como o hipotireoidismo, estão associadas ao desenvolvimento da esteatose hepática. O uso de alguns medicamentos, como certos corticosteroides (entre outras substâncias), pode também contribuir para o processo.

O diagnóstico precoce é fundamental, pois a esteatose geralmente não apresenta sintomas evidentes. Quando surgem, incluem dor abdominal, fadiga extrema e perda de peso inexplicável. Isso significa que a doença já evoluiu para sua forma mais grave, como fibrose avançada ou mesmo cirrose, insuficiência hepática e câncer.

Especialmente aqueles que se encaixam nos grupos de risco devem realizar exames de rotina para monitorar a saúde do fígado. O ultrassom abdominal é o exame mais acessível para diagnosticar a esteatose hepática, permitindo a avaliação do acúmulo de gordura no órgão.

A elastografia hepática (FibroScan) é também um exame não invasivo que permite avaliar a rigidez do fígado, além da quantidade de gordura e fibrose presentes. Outro método altamente preciso para quantificar a gordura depositada é a ressonância magnética. Já a biópsia hepática, que faz uma análise direta da quantidade de gordura e detecta inflamação e fibrose, é indicada apenas em casos mais graves.

Identificada precocemente, a esteatose pode ser revertida com mudanças na alimentação, hábitos e uso de terapias medicamentosas. O acompanhamento médico, testes e exames periódicos são essenciais para avaliar o sucesso dos tratamentos adotados.

Estilo de vida importa

O estilo de vida atual talvez seja o fator de risco mais comum para a esteatose hepática. O consumo elevado de alimentos ultraprocessados (ricos em açúcares e gorduras saturadas) somado ao sedentarismo é determinante para o aumento da gordura hepática.

A ingestão constante e exagerada de bebidas alcoólicas tem sua parcela de culpa. O limite saudável para mulheres é de menos de 140 gramas de álcool por semana (9-10 taças de vinho ou 10-12 latas de cerveja). Para os homens, menos de 210 gramas (14-17 taças de vinho ou 15-18 latas de cerveja).

Portanto, adotar um estilo de vida saudável, praticar com regularidade uma atividade física, limitar o consumo de álcool, realizar exames de rotina e prestar atenção aos sinais do corpo são atitudes que podem fazer diferença na prevenção da esteatose hepática e para saúde em geral.

Gerenciar o estresse e procurar ajuda psicológica igualmente podem ser medidas positivas, uma vez que os fatores emocionais influenciam os hábitos alimentares e o cuidado com a saúde.

A compreensão da gravidade da esteatose hepática é muito importante para toda a sociedade. Atualmente, as doenças hepáticas são a décima causa de morte da população em geral, mas a terceira entre os pacientes com gordura no fígado e inflamação.

Abordagem holística

A natureza multifacetada das causas da doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica e a relação entre essa e outras condições, como diabetes, síndrome metabólica, diverticulite ou inflamação crônica, fundamentam a necessidade de uma abordagem holística para o tratamento.

Quando prossegue sem freios, a esteatose seguida pela esteato-hepatite faz o fígado se tornar fibroso. Nessa condição, ele não mais realiza as suas funções adequadamente, com aumento do risco de insuficiência hepática. Muitas vezes, a perda de 5% a 10% do peso corporal se desdobra em melhorias significativas na saúde do fígado.

O uso de inibidores de SGLT2, como empagliflozina (nome comercial Jardiance) e dapagliflozina (Forxiga) é, atualmente, uma das grandes esperanças. Esses medicamentos tem sido eficazes na redução do risco cardiovascular e gordura hepática especialmente em pacientes com diabetes tipo 2. A pioglitazona (Actos) também melhorou a resistência à insulina e a inflamação hepática.

As pesquisas evidenciam ainda que a liraglutida (Saxenda), exenatida (Byetta) e semaglutida (Ozempic), além de tratar o diabetes tipo 2, atuam com sucesso na redução da gordura hepática e na melhora dos parâmetros do perfil lipídico. A combinação de medicamentos, como dapagliflozina e exenatida, e outros fármacos antidiabéticos, promove resultados promissores em termos de segurança e eficácia no tratamento do problema.

Em estudo preliminares, a tirzepatida, um agonista dos hormônios GIP e GLP-1, mostrou boa ação sobre a esteatose. Em relação à fibrose, estão em andamento ensaios clínicos controlados (ERC), mas os resultados iniciais sugerem que o medicamento pode diminuir o grau de fibrose hepática.

Novas terapias estão em desenvolvimento, incluindo medicamentos que visam diretamente a inflamação e a fibrose hepática. Em março deste ano, a agência reguladora norte-americana, a FDA, aprovou o resmetirom, primeiro medicamento para pacientes com esteato-hepatite não alcoólica e fibrose moderada a avançada, associado à dieta e exercícios. Comercializado sob o nome Rezdiffra, é um agonista seletivo do receptor de hormônio tireoidiano tipo b (THR-b).

De todo modo, para ter êxito, a medicina já sabe que o cuidado com a esteatose hepática precisa ser feito de forma integrada, considerando as comorbidades associadas e com a promoção de mudanças no estilo de vida. Minha sugestão é que você não ignore os riscos e converse com a sua médica ou clínico geral sobre o que fazer para proteger a saúde do seu fígado.The Conversation

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comSaúde

Você quer ficar por dentro das notícias de saúde mais importantes e receber notificações em tempo real?