Como a Síndrome de Guillain Barré transformou jovem em artista
No final de 2015, a brasiliense se viu paralisada em uma cama de uma hora para outra e, a partir daí, foi obrigada a reinventar a vida
atualizado
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Os caminhos que tomamos para encontrar a nossa própria essência, muitas vezes, são insondáveis. A brasiliense Kelly Cristina Amorim da Silva, 27 anos, descobriu-se artista depois que uma grave doença – a Síndrome de Guillain Barré – roubou-lhe os movimentos do corpo.
Nos primeiros dias de dezembro de 2015, Kelly sentiu um mal-estar generalizado: febre, dor de cabeça, dor no corpo. Quatro dias depois de ter sido hospitalizada no Hospital Bom Jesus em Águas Lindas não conseguia mais movimentar os braços e as pernas. De lá, foi encaminhada para o Hospital de Brazlândia e, como as coisas só pioravam, foi removida para o Instituto Hospital de Base (IHBDF).
À época, o Brasil vivia a epidemia de Zika vírus, e como Kelly era agente comunitária de saúde os médicos rapidamente desconfiaram que ela era mais uma vítima da doença. “Não deu tempo nem de fazer o teste de Zika, pois meu quadro evolui para o Guillain Barré, que é uma espécie de complicação”, recorda.
A síndrome é um distúrbio autoimune, que costuma ser desencadeado por uma infecção. Em uma espécie de curto-circuito, o sistema imunológico ataca o sistema nervoso, danificando os nervos que conectam o cérebro às outras partes do corpo. Resultado: braços e pernas não respondem mais ao comando da mente. Nos casos mais graves, o sistema respiratório também começa a parar, o que pode levar à morte, caso não sejam adotadas medidas de suporte médico.
Pouco antes do Réveillon de 2016, Kelly deixou o Hospital de Base em uma cadeira de rodas e estava praticamente sem autonomia. “Não tinha força nas pernas para ficar em pé nem nos braços, para me alimentar sozinha.”
A jornada de superação começava ali, mas, além dos desafios físicos, haveriam os psicológicos. Antes da doença, Kelly era funcionária pública, tinha comprado uma casa para viver sozinha e estava estudando direito. “Vivia um momento de grande independência e, de repente, perdi tudo.”
O apoio para se reerguer veio principalmente da família e de uma fisioterapeuta que passou a acompanhá-la. “Eles não me deixaram desistir”. A doença foi aplacada aos poucos com medicação para a dor e exercícios para recuperar o controle motor. Depois de um ano de tratamento, ela passou da cadeira de rodas para um andador e, em 2018, trocou o andador por muletas, hoje, usa uma bengala.
Novo baque
Neste meio tempo, um novo baque a atingiu. A Prefeitura de Águas Lindas a demitiu do cargo de agente comunitário de saúde pública, alegando que ela não tinha mais condições de exercer o trabalho. Kelly luta na Justiça para reverter este ato, pois, quando a doença apareceu, ela estava no último mês do estágio probatório para efetivação na carreira.
A moça lembra que, quando o poder público a dispensou, em junho de 2018, a depressão dos primeiros meses voltou com força avassaladora.
Desta vez, o apoio viria de um amigo. Ele insistiu para que a brasiliense o acompanhasse em um encontro de grafiteiros. “Ele praticamente me carregou porque ainda tinha e tenho dificuldades de locomoção.” No evento, realizado em Ceilândia, com uma lata de spray nas mãos, Kelly descobriu que poderia desenhar, pintar, se expressar. “O curioso foi que, já na primeira vez, eu me apaixonei por aquilo. Daí, comecei a participar da cena e aprimorar a técnica”, lembra.
O ato de grafitar também se mostrou um excelente exercício para que ela recuperasse o controle dos movimentos dos braços. “Minha fisioterapeuta brinca que a lata tem o peso certo para os meus braços.”
Nestes primeiros dias de 2020, Kelly se prepara para participar de sua primeira exposição coletiva na galeria Casa, do Casa Park. Ilustrações digitais que ela faz na tela do celular e depois são impressas em tamanho de pôsteres serão exibidas na mostra Deslocamentos, que estará em cartaz de 8 a 31 de janeiro no espaço.
“A força que ela adquiriu por sua história de vida de mulher, negra, periférica e deficiente física está latente nos desenhos”, avalia a artista visual Tatiana Reis, curadora da exposição. Depois de tudo que viveu, Kelly se sente fortalecida. “Não diria que sou grata à doença, mas reconheço que ela ampliou meus horizontes, redimensionou o que eu enxergava como dificuldades.”
Para 2020, ela só pensa em ir além.