Bariátrico aos 13 anos: “Sentia o desconforto dos outros no olhar”
Tratamento contra a obesidade é muito mais complexo em crianças e adolescentes do que em adultos. Cirurgia bariátrica pode ser uma opção
atualizado
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Desde que nasceu, o estudante Michel Atie, 16, luta contra a balança. Foi um bebê gordinho e um menino acima do peso — mesmo com alimentação saudável e controlada, sem acesso a doces e salgadinhos, e exercícios constantes, o menino ficava acima da faixa de peso prevista para a idade.
“Sempre perguntava para a pediatra, e ela dizia que estava dentro do esperado. A gente fazia manobras para ele não ter contato com comidas calóricas porque sabíamos que, se o Michel já engordava com comida saudável, imagina se comesse brigadeiro, bolo e bolacha”, lembra a mãe, Érika Atie.
Além do problema físico, Michel sofria bullying sério na escola. Desde os 4 anos, era excluído de brincadeiras, recebia trotes e, quando entrava em um grupo de Whatsapp com os colegas de classe, logo alguém o retirava alegando que não ficaria no mesmo lugar que “um gordo, suado, que dança mal”. O estudante chegou até a receber uma ameaça de morte pela internet.
Um dos refúgios de Michel era a dança. Ele começou aos quatro anos de idade e, aos seis, participou de uma apresentação na escola. Pela primeira vez, sentiu que os colegas olharam nos seus olhos. “Eu nunca tinha recebido atenção. As pessoas tinham um desconforto em olhar para mim”, lembra.
Na pandemia, Michel engordou ainda mais. Sem sair de casa para fazer academia, natação e aulas de dança, chegou a pesar 90 quilos, com apenas 1,47 m — atingindo, assim, um IMC de 41, considerado obesidade grau III. Ele tinha problema no joelho, gordura no fígado e colesterol alterado.
“A gente viu que estava muito sério, mas senti que não estava pronto para fazer a cirurgia bariátrica“, lembra o estudante. A opção foi tentar o Ozempic: o medicamento para diabetes tem como efeito secundário a perda de peso e é muito usado por pacientes para emagrecer.
Mas não funcionou. Em seis meses, Michel emagreceu apenas 300 gramas e vomitava todos os dias por conta do remédio. Foi aí que a família decidiu conversar seriamente sobre a cirurgia bariátrica.
Michel e Érika foram a alguns médicos, que afirmaram que ele não iria crescer se fizesse a cirurgia aos 13 anos. “Pelo peso muito alto, a puberdade atrasou e eu não tinha aquele estirão de crescimento. Estava muito baixo para a minha altura, e continuava engordando”, conta o adolescente.
Porém, dois médicos especialistas sugeriram que ele fizesse, sim, a cirurgia. Michel passou por nutricionista, psicólogo, fez vários exames e consultas. Em 30 de abril de 2021, com autorização dos pais, o estudante foi operado.
Bariátrica em adolescentes
A cirurgia bariátrica não é um tratamento considerado padrão para pacientes com menos de 18 anos. Pela resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicada em 2015, pacientes com 16 anos podem ser operados se forem avaliados e entenderem os riscos. Em adolescentes mais jovens, a norma do CFM afirma que o procedimento é considerado experimental e, muitas vezes, é preciso autorização judicial.
O vice-presidente executivo da Sociedade Brasileira de Cirurgias Bariátricas e Metabólicas (SBCBM) Luiz Vicente Berti explica que a regulamentação foi feita em outra realidade, considerando o mundo de 35 anos atrás, quando o procedimento foi criado. Ele foi um dos médicos que atendeu Michel.
“Um adolescente de 16 anos hoje não é um adolescente de 30 anos atrás. Muitas vezes ele já tem uma vida sexual ativa, é uma situação completamente diferente, inclusive nas alterações hormonais e de crescimento”, defende o médico.
Ele lembra que na sociedade de hoje, muitas crianças são diagnosticadas com diabetes tipo 2, uma condição que era conhecida como tradicional em idosos, mas que atualmente atinge pacientes cada vez mais jovens. O mesmo acontece com a hipertensão, com a gordura no fígado, com a apneia do sono.
Berti explica que vários artigos médicos mostram que a bariátrica em adolescentes não atrapalha o crescimento — no caso de Michel, inclusive, ajudou. “Mas mesmo que interferisse, vou deixar uma criança já diabética, tomando remédios, porque ela eventualmente poderia crescer dois centímetros? Mas o que a gente vê, de toda forma, é um desenvolvimento muito normal, até melhor do que a média”, aponta Berti.
Na maioria dos casos, a bariátrica, hoje, é feita por laparoscopia, um procedimento não invasivo que evita a necessidade de abrir o paciente. Por isso, é considerada de baixo risco — a taxa de mortalidade é semelhante à de um parto cesárea, por exemplo. “É uma chance do paciente viver bem a melhor fase da vida dele”, diz o médico. Berti afirma que a obesidade em adolescentes não é só uma questão física, mas uma “doença da alma”.
A vida depois da bariátrica
Michel conta que comparado a tudo o que passou, o desconforto das primeiras semanas pós-bariátrica não “foi nada”. “Depois do primeiro mês, minha vida foi melhorando cada dia mais. Logo depois da cirurgia, comecei a crescer. Em dois anos, ganhei 20 e poucos centímetros”, lembra.
Hoje, ele tem 60 kg e 1,72 m, e afirma que a decisão da cirurgia foi a melhor que já tomou na vida. Os dias de bullying também ficaram para trás: Michel mudou de escola um ano depois da cirurgia e foi recepcionado de maneira completamente diferente. “Para mim, foi um baque. Era a mesma pessoa, mas fui recebido de outro jeito por causa da minha aparência”, diz.
O estudante, ator, cantor e dançarino decidiu, então, contar a própria experiência e se tornou palestrante contra o bullying. “Ninguém merece passar pelo que eu passei, pelo que todo obeso passa”, afirma.
Tratamento de obesidade em crianças e adolescentes
O pediatra Luiz Calliari, professor assistente de endocrinologia pediátrica da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, explica que no caso da obesidade em adolescentes, normalmente há uma junção de dois fatores. Se o paciente tem familiares com obesidade, diabetes tipo 2 e problemas cardiovasculares, ele tem, de nascença, uma predisposição a desenvolver a doença. “Somado ao ambiente obesogênico, que induz ao excesso de peso, é bem difícil de modificar”, afirma.
Ele conta que fazer o controle de peso em crianças e adolescentes é mais complicado do que em adultos. Eles ainda não têm uma força de vontade tão grande, e quando são estimulados a emagrecer, ao invés de ficarem motivados, deprimem, entram em um quadro de ansiedade. É um equilíbrio frágil e que exige colaboração da família.
“Você não pode dizer para a criança que ela não pode comer um doce porque é obesa. Ela não pode comer porque é terça-feira, não é dia de doce. É preciso criar hábitos saudáveis, e a gente tem muita dificuldade em mudar esse ambiente”, explica Calliari.
Quando a mudança de estilo de vida não funciona, a segunda abordagem é a medicamentosa. O pediatra diz que os remédios modernos para perda de peso (como Ozempic, Wegovy, Saxenda) são muito mais seguros do que no passado, e evitam casos graves de obesidade em crianças e adolescentes.
“Não é perfeito, não resolve todos os casos. Mas na maioria das vezes, pelo menos evita o ganho de peso. Para esse público, às vezes basta não engordar, porque em um ano eles vão crescer em altura e redistribuir o peso. Muitos pais chegam com exigência de adulto, de perder tantos quilos, mas se ele cresce, diminui o risco de comorbidade, aumenta a qualidade de vida, melhora a parte cardiovascular, respiratória, de resistência insulínica e até a mobilidade”, conta o médico.
Os novos medicamentos também trazem novos questionamentos sobre o uso a longo prazo, já que a ciência não sabe exatamente como “desmamar” o paciente sem a recuperação do peso. “Imagina uma criança ter que usar um remédio até o fim da vida, os 60, 70 anos. Quanto vai custar e quais são os efeitos colaterais?”, indaga Berti.
Se nada funciona, a última opção é a cirurgia. Calliari aponta que não é um procedimento indicado para a criança com sobrepeso, ou obesidade leve. É o extremo da obesidade. “Estamos falando de crianças com distúrbios metabólicos, dislipidemia, diabetes tipo 2, problemas mecânicos, dificuldade de angulação pelo excesso de peso. São jovens com comorbidades que têm risco maior do que o da cirurgia. Esses, sim, devem considerar o procedimento”, diz.
Para Érika, a bariátrica foi o maior presente que podia ter dado ao filho. “É saúde. Antes, toda vez que eu o alimentava, sentia que estava matando meu filho. Vivemos dez anos de inferno, e agora a gente vive alegria”, comemora.
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