Cozinha é lugar de mulher, sim, e com muito orgulho
Mercado gastronômico ainda é majoritariamente masculino, mas elas conquistam cada vez mais mais espaço, apesar do preconceito
atualizado
Compartilhar notícia
Por muitas décadas, o papel das mulheres nas famílias foi o de promover conforto e, especialmente, preparar os alimentos para o consumo de filhos e maridos. Já nas cozinhas profissionais, principalmente nas de alta gastronomia, a presença feminina sempre foi vista de forma preconceituosa, para se dizer o mínimo. Nos dias de hoje, ainda é comum encontrar quem torça o nariz para o jeito único das mulheres exercerem o seu direito de empreender neste universo ainda machista. Mas elas têm conquistado espaço e notoriedade com muita força, resiliência e sabedoria.
Neste Dia Internacional da Mulher, eu conto um pouco da trajetória de quatro cozinheiras incríveis, que ultrapassaram a barreira do preconceito e construíram negócios prósperos e inspiradores. Giovanna Grossi, Renata Carvalho, Paula Labaki e Renata La Porta sabem que mostrar serviço é o melhor caminho para desarmar o machismo na cozinha.
Giovanna Grossi
Nascida em Jaú e criada em Maceió, Giovanna Grossi é um dos nomes mais celebrados da nova geração de cozinheiras brasileiras. Aos 23 anos, foi a vencedora das etapas brasileira e latino-americana do concurso Bocuse D’ Or, considerado a copa do mundo da gastronomia, no qual ela representou o Brasil em Lyon (França), em 2017. Hoje, preside o comitê do país, sendo a única mulher no júri da competição. Desde janeiro de 2020, ela comanda o Animus, seu restaurante de comida brasileira em Pinheiros (SP), cujo time da cozinha é formado apenas por mulheres.
Atualmente com 29 anos, Giovanna nem se imaginava cozinheira até terminar o ensino médio, mesmo tendo uma família que empreende no segmento desde o seu nascimento. “Quando terminei a escola, não sabia o que queria ser e meu pai me incentivou a fazer gastronomia, porque de uma forma ou de outra, o conhecimento iria me servir, nem que fosse para eu cozinhar só para a minha subsistência”, relembra. Depois do curso de dois anos na Anhembi Morumbi (SP), ela partiu para a França, em 2012. Lá, aperfeiçoou os estudos no celebrado Instituto Paul Bocuse e no Instituto Alain Ducasse. Também trabalhou em restaurantes como o triplamente estrelado Le Taillevent e no Maison Pic de Valence. Em 2014, partiu para a Espanha. Estudou no Basque Culinary Center, em San Sebastian, e na Espai Sucre, importante escola de confeitaria de Barcelona.
A temporada na Europa, no entanto, foi de desafios. “Foi bem difícil, porque é um mundo muito machista, ainda mais na França. Sem contar a barreira do idioma. No primeiro restaurante em que trabalhei, a minha chef de partida era uma mulher, então eu via a força dela e tudo pelo que ela lutava, o que me ajudou muito”, conta ela.
Para a cozinheira, o preconceito deve ser vencido com uma atitude firme.
“Nós, mulheres, temos de colocar um escudo em nossa frente, porque escutamos muita coisa. Devemos mostrar a que viemos com resultado. Sempre busquei a confiança das pessoas fazendo o meu trabalho. Escutei muitas vezes que não era capaz, o que é muito difícil. Mas daí, ou você fica calada e mostra resultado e consegue conquistar a confiança do outro, ou se desgasta tentando mudar uma mentalidade que não vai evoluir do dia para a noite. É muito mais um desafio com a gente mesma do que com os outros”, analisa.
Paula Labaki
Nascida em 8 de março, a paulistana Paula Labaki é hoje um dos nomes femininos mais importantes entre os assadores do país. Sim, o segmento de churrasco ainda é muito masculino, mas ela busca incentivar outras mulheres a mostrarem que também entendem de carne e fogo. Não à toa, a também dona de bufê e presta consultoria para diversos restaurantes do país, incluindo o Caminito e a Fazenda Churrascada. Também tem uma marca própria de sanduíches e temperos em parceria com o filho.
Com pulso firme e respeito já conquistado ao longo de uma trajetória de mais de 20 anos, ela avalia o preconceito com as mulheres na gastronomia.
“Uma das minhas maiores dificuldades como empreendedora do ramo da gastronomia foi ter começado muito cedo num universo tão masculino. Havia muito olhar torto. Ainda hoje tem, mas a gente vem vencendo isso a cada dia. Digo sempre que a gente vence com a entrega, com o que a gente faz, com a coragem de empreender num país como o Brasil. Eu acho que o grande desafio é vencer o medo, é ter coragem de acreditar naquilo que tem para entregar. Eu sei o que quero e vou em busca com estudo e capacitação, me cercando de pessoas capazes e que acreditam no meu sonho. É isso que me faz manter o foco e caminhar em frente“, afirma a chef.
Para ela, o fato de ser mulher ajuda a manter o objetivo em mente, apesar das dificuldades. “Eu acho que a mulher é muito focada. Quando a gente quer uma coisa, vai atrás até as últimas consequências para chegar no que sonhamos. Isso é um privilégio”, ensina ela. O fato de ter que lidar com homens diariamente, ela tira de letra. “A minha relação com os colaboradores é maravilhosa. Ganhei a confiança dos homens por esta entrega. Hoje em dia, o universo da carne, que é muito masculino, já vem acolhendo muitas mulheres empoderadas, competentes e que estão desenvolvendo um trabalho muito lindo. Podemos estar onde quisermos”, finaliza Paula.
Renata La Porta
Dona de personalidade forte, a chef banqueteira Renata La Porta é apaixonada por comida desde criança. Foi ela mesma quem organizou a própria festa de aniversário de cinco anos e, aos 16, já partia para a Suíça em busca de conhecimento gastronômico. Após três anos de estudo, voltou ao Brasil para iniciar a trajetória empreendedora. Uma lanchonete na UnB, foi o primeiro passo de uma carreira de sucesso, alicerçada em muito trabalho e força.
“Nasci com a veia empreendedora e há 30 anos começava oficialmente minha aventura na área que mais amo: a gastronomia. Foram muitos leões, aprendizados, ideias, alegrias, lágrimas, conquistas, tombos, sufocos, erros e acertos. Tenho orgulho da resiliência e determinação que demonstrei nessa trajetória e acima de tudo do rastro de sabor que deixei em milhares de eventos realizados”, conta ela.
Para Renata, empreender no Brasil é um desafio para os corajosos, mas as mulheres sofrem ainda mais que os homens quando desejam colocar uma empresa de pé. “É inegável que nós mulheres enfrentamos algumas dificuldades adicionais como crédito mais caro, discriminação em concorrências e outros empecilhos. Mas com garra conseguimos superar tudo isso”, analisa a empresária.
Ela conta que já se beneficiou da postura de quem subestimou a sua capacidade pelo fato de ser mulher. “Como tudo na vida tem dois lados, muitas vezes me vi em vantagem na mesa de negociações diante de um homem que sentava desarmado pelo seu preconceito. Me tratar com alguém inferior ou menos capaz é um erro que costuma custar caro”, brinca a chef.
Com mais de 200 colaboradores, Renata celebra a diversidade e o respeito conquistado. “Adoro a minha equipe feminina, porque acho as mulheres muito criativas, determinadas e capazes. Faço inclusão de forma natural quando ainda nem se falava nisso. Mas meus meninos também são são essenciais para a riqueza dessa diversidade. Tenho alguns que estão comigo há mais de 20 anos. Seja homem ou mulher, a receita está no trato, no respeito e em saber delegar as responsabilidades”, diz uma das banqueteiras mais respeitadas da Capital Federal.
Renata Carvalho
A avó Lourdes é a grande referência da chef Renata Carvalho, formada no Instituto Argentino de Gastronomia e que há mais de 10 anos empreende no segmento de alimentação. Os primeiros negócios foram o gastropub Loca Como Tu Madre e o restaurante Ancho, focado em comida feita na brasa. A saída da sociedade nestas casas a levou a uma parceria com três homens. Com Rick Emediato, Ricardo Secchis e Lucas Porto, Renata comanda a Ricco Burger, hoje com cinco operações em Brasília. Com o grupo R2 há alguns anos, ela também assinou a curadoria gastronômica de várias edições do Na Praia e, mais recentemente, do Mané, Mercado Vírgula.
“Avalio a minha trajetória como sendo de sucesso. Consegui chegar onde eu queria na minha carreira. Desde que saí de Brasília e fui para Buenos Aires estudar, queria poder colocar a minha história dentro dos meus negócios e acredito que consigo fazer isso hoje”, diz a chef, que vai brindar a cidade com um novo projeto em 2022.
Para ela, ser mulher lhe trouxe todas as dificuldades possíveis.
“Tive todas (as dificuldades). Seja para conquistar o meu primeiro emprego, para construir a primeira empresa, lidar com fornecedores, para tocar as obras. É ainda difícil ser mulher à frente de um negócio, porque os olhares são voltados de uma forma diferente para nós. O fornecedor, por exemplo, acha que pode te enganar porque é homem. Então, ainda existe esse machismo estrutural dentro dos negócios”, reflete.
Apesar da dificuldade em lidar com o machismo e o preconceito, Renata avalia que atualmente consegue ter autoridade. “Meus sócios são homens e a maioria dos colaboradores também. Dentro do meu ciclo de sociedade e convivência eu sou muito respeitada e acreditada. Tenho uma voz que é ouvida, assim como com os meus amigos. Consigo me impor e colocar as minhas ideias e elas são de fato bem aceitas e ouvidas”, comemora.
Num mundo em que ainda temos de ouvir piadas e frases jocosas, perceber que há mulheres poderosas e vencedoras é um incentivo e tanto. Para você, mulher que está lendo este texto agora, eu desejo coragem e força, não somente hoje, mas sempre. Nunca será fácil para nós, mas julgo que o sabor da vitória, depois de tantos obstáculos, é até mais gostoso. Não se deixe parar pelo medo do machismo estrutural que ainda tenta nos colocar num nível abaixo, que nos desacredita, engana e mata.
Acredite e siga em frente, por você e pelas gerações que virão. Feliz Dia da Mulher!
Para mais dicas de gastronomia, siga @lucianabarbo no Instagram.