Como o vinho de Bordeaux influenciou a criação da Coca-Cola
Na coluna de hoje, relembro a história que deu origem a Coca-Cola
atualizado
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Esta é uma daquelas histórias que só a realidade poderia criar. Seus personagens principais: dois Papas; um químico alemão e outro italiano; um farmacêutico italiano; reis e rainhas; presidentes; artistas; escritores e intelectuais. E, representando o Brasil, Santos Dumont. Tudo começa em 1863 quando foi criado, pelo farmacêutico Angelo Mariani, o Vin Tonique Mariani à la Coca de Peroum, que ficou famoso como Vin Mariani, elaborado com vinho Bordeaux e folhas de coca.
Mas, antes de contar o que aconteceu, vamos voltar um pouco ao passado, primeiro há três anos antes, em 1860, quando o químico alemão Albert Niemann isolou o componente ativo das folhas de coca. Logo, diversas propriedades terapêuticas foram atribuídas à cocaína.
Agora, um mergulho mais profundo no passado, na região que hoje é o Peru, onde, desde há 4500 anos os habitantes mascam a folha de coca por seu efeito estimulante, facilitando a respiração na altitude e por aliviar as dores musculares. O que foi logo observado pelos invasores espanhóis que lá chegaram no século XVI.
Mas o que chamou atenção de Angelo Mariani para a cocaína foi a leitura de um artigo sobre as pesquisas do cientista italiano Paulo Mantegazza, que havia gostado do produto que declarava: “Prefiro ter uma vida útil de dez anos com coca do que 10.000.000.000.000.000.000.000.000 de séculos sem coca”.
Mariani viu que aquilo dava negócio e descobriu que misturando folhas de coca trituradas ao vinho Bordeaux tinto, o álcool, diluía e ativava a substância, resultando em um “tônico” que, enriquecido com conhaque e adoçado, tinha uma proporção de 150 miligramas de cocaína para cada garrafa de 750ml. E este foi o primeiro produto de cocaína não medicinal lançado no mercado.
“As múmias se levantam e andam quando tomam um copo de Vin Mariani.”
O Vin Mariani foi divulgado como sendo um “tônico medicinal” do tipo “cura tudo”, abrindo o apetite e facilitando a digestão, renovando, revigorando, nutrindo, fortalecendo e trazendo de volta a energia perdida. Ainda combatia a fraqueza e era uma “vacina” para evitar diversas doenças, além de ser um analgésico poderoso. Era um antidepressivo tão eficaz que ficou conhecido como o “Vinho da Alegria”.
Era recomendado para ser consumido, antes ou depois das refeições, mas com moderação. Apenas três taças por dia (não localizei a informação sobre o tamanho da taça). As crianças não poderiam ficar sem acesso a um produto desta qualidade e para elas bastaria reduzir a dose pela metade.
O que ninguém sabia é que esta mistura de álcool e cocaína gera uma reação metabólica no fígado, produzindo o cocaetileno, que é um psicoativo mais poderoso e tóxico do que apenas cocaína ou álcool. Assim, ao beber o vinho de coca, na realidade se consumiam três drogas que induziam à euforia.
“Nunca algo foi tão elogiado de maneira tão alta ou justa.”
Ficou fácil de entender porque o Vin Mariani tinha tantos fãs. Logo, ele passou a ser vendido por toda a Europa e EUA, e se tornou a bebida favorita do Vaticano, nos períodos dos Papas Pio X e Leão XIII.
Consta que o Papa Leão XIII nunca se afastava de um frasco cheio de Vin Mariani, o considerava “saudável, forte, energético e vital”, e o utilizava para se fortalecer “quando a oração era insuficiente”. Gostava tanto que deu uma medalha de honra do Vaticano ao seu criador o declarando como “benfeitor da humanidade”. O mais pitoresco é que o Papa foi parar em um dos anúncios do vinho.
“Torna os homens mais corajosos e enche as damas de vivacidade e charme.”
É provável que Mariani tenha criado a primeira campanha de marketing utilizando os depoimentos de celebridades, com seus retratos e biografias. Da nobreza, contribuíram o príncipe de Gales, a Rainha Vitória, o Czar e a Czarina da Rússia, os reis da Noruega e da Suécia. Autores como Alexandre Dumas, Jules Verne, Henrik Ibsen, Émile Zola também contribuíram. Nos EUA, o presidente McKinley se entusiasmou com o vinho, assim como o inventor Thomas Edison e o general Ulysses S. Grant, comandante do Exército Nortista na Guerra Civil.
Santos Dumont declarava que para que seus aeróstatos funcionassem, dois líquidos eram necessários, a essência do “petroleum”, a gasolina, para a energia do motor e, para a energia humana, o Vin Mariani, a quinta essência da qualidade.
Como se não bastasse, o vinho foi aprovado como terapêutico por mais de 8 mil médicos. Um volume de notícias médicas de 1890 confirma que “nenhuma preparação médica reconhecida recebeu um endosso mais forte nas mãos da profissão médica”.
Logo, começaram a surgir imitações para concorrer com o Vin Mariani, e a tática era colocar mais coca ainda na fórmula.
Nos EUA, um dos plagiadores foi um farmacêutico da cidade de Atlanta, o Coronel John Smyth Pemberton, viciado em morfina, como consequência do tratamento de um ferimento recebido durante a Guerra Civil. Ele rapidamente se tornou um apreciador do vinho batizado com coca e em 1885, em Columbus, na Geórgia, lançou um para chamar de seu, o “Pemberton’s French Wine Coca” na esperança que este “tônico cerebral” o ajudasse a superar seu vício. O diferencial do seu vinho foi o de adicionar à fórmula o extrato de noz-de-cola africana, que é uma potente fonte de cafeína.
Mas, várias proibições foram surgindo nos EUA. Primeiro com a Lei de Alimentos e Drogas Puras de 1906. A cocaína ainda continuou sendo utilizada por algum tempo, mas logo se constatou que se tratava de uma substância extremamente perigosa e sua comercialização foi proibida. E tudo acabou desembocando, em 1920, na Lei Seca com a proibição completa do consumo de álcool.
Neste meio tempo, caíram drasticamente as vendas do Vin Mariani original. Com a Lei Fiscal de Narcótico, o produto parou de ser comercializado oficialmente nos EUA. A produção na Europa cessou completamente após a morte de Angelo Mariani, em 1914, quando a fórmula original também foi perdida.
Já Pemberton reformulou sua bebida, retirou o álcool, substituindo o vinho por um xarope, passou a utilizar folhas de coca descocainadas, colocou gás, engarrafou e, assim, criou a Coca-Cola.
Em 2014, Christophe Mariani aproveitou o sobrenome e lançou uma nova versão do Vin Mariani. Segundo ele, baseado em análises de amostras que chegaram até os dias de hoje. Também utilizou um Bordeaux tinto, que é fortificado a 22° (acréscimo de álcool vínico) e adoçado, e ela, a estrela principal não podia faltar, folhas de coca descocainadas. Não fez tanto sucesso assim.