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Trajetória de Milei oferece pistas sobre seu governo

A raiva contra a política venceu, mas a relativização da ditadura também

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Imagem colorida do candidato à presidência da Argentina, Javier Milei - Metrópoles
1 de 1 Imagem colorida do candidato à presidência da Argentina, Javier Milei - Metrópoles - Foto: Tomas Cuesta/Getty Images

Como será o próximo governo a partir dos sinais que Milei ofereceu em sua trajetória política? Algumas apostas: batalhas pela pauta de costumes para dominar o noticiário, recuos de muitas de suas promessas econômicas pela adoção domesticada de uma política neoliberal. Um pequeno grupo autoritário e corrupto brigando pelo poder com o macrismo. E uma tentativa de reescrever a história recente do país.

É uma vitória contra a política tradicional, mas também contra um monumento da democracia argentina, que é sua memória da violência da ditadura militar. É um dos poucos países que julgou e condenou seu período de exceção. Que aprendeu a cultivar as avós e as mães da Praça de Maio. Foi eleita uma vice-presidente, Victoria Villarruel, que nega os crimes da ditadura e os 30 mil mortos pelo regime. E ainda protagoniza a defesa da pauta de costumes.

O último debate evidenciou essa posição. Milei emulou o discurso de Emilio Massera, um dos militares julgados em 1985. “Para nós, nos anos 70, houve uma guerra. Nessa guerra, as forças do Estado cometeram excessos, mas também os terroristas mataram gente, explodiram bombas e cometeram delitos de lesa humanidade”.

Para especialistas, esse desprezo pela memória é carregado justamente pela juventude que apoia Milei. A ditadura é um passado distante. Menem também. Macri foi um suspiro. Tudo o que esses jovens conhecem são o fracasso do peronismo e a uberização do trabalho, entregando produtos em moto ou bicicleta, sem direito trabalhista algum. Esses jovens, até 30 anos, não conhecem o Estado. Logo, Milei quer exterminar algo que nunca os alcançou.

Milei terá grandes desafios: pela primeira vez, dialogar democraticamente com diferentes setores da sociedade. Encontrar pessoas para formar um primeiro e segundo escalões técnicos. Não tem experiência política ou gestão do Estado, não tem governadores em seu partido, sem prefeitos, sem maioria parlamentar. Começa um governo sem absolutamente nada. Não será fácil manter um círculo próximo de confiança. E, desde a formação do Liberdade Avança, tudo o que se viu foi o desenvolvimento de um grupo político autoritário e corrupto.

“Entre a máfia e o Estado, prefiro a máfia. A máfia tem códigos, cumpre os seus compromissos, não mente, é competitiva”, disse, certa vez, Milei em uma entrevista. A gestão do Liberdade Avança é caótica e centralizada. Suas diretrizes e decisões dependem do humor de sua cúpula, formada por Javier; Karine Milei, “a chefe”; “o arquiteto” Santiago Caputo, ligado ao macrismo; Carlos Kikuchi; entre poucos outros. Todos os militantes originais que criticaram o partido foram expulsos. E há os casos explícitos de vendas de candidaturas legislativas para financiar o projeto presidencial. São muitas denúncias, até agora sem condenações.

É muito difícil acreditar que Milei irá implantar duas de suas bandeiras econômicas: a dolarização e o fim do Banco Central. Primeiro, porque politicamente precisaria de uma maioria que ele não tem no Congresso. E também porque o empresariado já avisou que a dolarização atrapalharia seus negócios. Segundo, a Argentina não tem como captar os bilhões de dólares necessários para essa operação.

Assim, restará a Milei seguir a cartilha neoliberal de Menem e Macri – este, por sinal, vê a chance de uma redenção. Criticado por implementar uma política econômica a conta-gotas, deve apoiar Milei em uma mudança de rumo drástica, como o próprio disse em seu discurso da vitória.

Novos tempos de desregulação, flexibilização dos direitos trabalhistas, privatizações, abertura comercial, aperto fiscal. Recessão para segurar a inflação. O custo social pode ser ainda maior do que já é. 55% da população pode ter paciência, a outra parte…

A autenticidade de seu discurso econômico advém não só de suas concepções acadêmicas, mas de sua carreira profissional e das pessoas a quem deve sua projeção midiática. Milei começou a trabalhar nas empresas do bilionário Eduardo Eurnekian em 2008. Chegou a ser economista-chefe de sua empresa. Os dois desenvolveram um relacionamento pessoal, e Eurnekian tem uma forte influência sobre o presidente, embora ele raramente mencione essa relação.

Eurnekian rachou com o governo Macri e promoveu a figura de Milei, a quem chamava de louco, em programas de TV, no canal A24. O economista passou a xingar Macri todas as vezes que surgia na TV. E foi um sucesso, dobrando a audiência desses programas. Quando Macri caiu, foi fácil escolher um novo inimigo.

Itinerários da mídia e da política. Jovem economista, apoiado por bilionário, faz sucesso na tevê insultando o atual presidente, Macri. Anos depois, vence a eleição presidencial com discurso de extrema direita, apoiado por Macri e necessitando de sua força política para ter um mínimo de governabilidade.

Milei é contra tudo e contra todos? Claro que não. A “casta política” que Milei ataca é o peronismo. Para ele, não existe “casta empresarial” que tirou bilhões de dólares do país. Pelo contrário, é o mercado que irá salvar o país. Entre empresários e a população mais pobre, Milei já escolheu um lado.

Com tantas dúvidas, qual o projeto de país do economista de extrema direita? Ninguém sabe. Em seu discurso, Milei prometeu mudanças drásticas e rápidas. O presidente sabe que não terá muito tempo. Criou grande expectativa de mudanças, e a frustração virá na mesma intensidade e velocidade. Quando a festa acabar e o governo começar, Milei e seus aliados irão enfrentar seu mais verdadeiro adversário: a realidade.

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