Sangue de brancos em Carrancas
A maior condenação coletiva à pena de morte de escravizados do Brasil Império
atualizado
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Quando os corpos negros mortos alimentavam o Atlântico, desatava um prejuízo. Quando o chicote invadia a pele preta, gritava uma punição. Era comum. Mas quando o sangue branco jorrou no interior de Minas Gerais, um terremoto despertou. No dia 13 maio de 1833, a Revolta de Carrancas matou homens, mulheres e crianças da família Junqueira, uma das mais ricas do sul mineiro. Os escravocratas ficaram em transe.
A rebelião ocorreu na fazenda Campo Alegre, que pertencia a Gabriel Francisco Junqueira, deputado da Assembleia Geral do Império. Pela manhã, seu filho Gabriel fiscalizava o trabalho nas plantações quando foi surpreendido pelo negro Ventura Mina, que o derrubou de seu cavalo e, com os escravizados Domingos e Julião, tirou-lhe a vida aos porretes A partir desse momento, não tinha mais volta. E os insurgentes partiram em uma jornada mortal de vingança e liberdade.
O grupo foi reprimido por funcionários na sede da fazenda Campo Alegre. Caminharam então para o ataque à sede da Fazenda Bela Cruz, e convocaram mais escravizados que trabalhavam na roça. Assim que chegaram à casa grande, assassinaram nove pessoas à pauladas e foiçadas: sete integrantes brancos da família Junqueira, (incluindo três crianças) e duas escravas. Outro Junqueira foi morto em uma emboscada. Foi um banho de sangue.
Os fazendeiros se armaram, se organizaram e conseguiram conter o levante com ajuda de capitães do mato e escravizados. Ventura Mina foi morto. Os autos indicam que caíram mais quatro pessoas. Os rebeldes sobreviventes embrenharam-se nas matas e, tempos depois, foram presos.
Esse acontecimento trágico é assunto do artigo “Nós somos os caramurus e vamos arrasar tudo”: a história da Revolta dos escravos de Carrancas, Minas Gerais (1833)”, escrito por Marcos Ferreira de Andrade e presente no livro Revoltas Escravas no Brasil (Companhia das Letras).. É possível ler uma versão do texto no site Impressões Rebeldes, da UFF (Universidade Federal Fluminense)
A notícia correu pelas cercanias. Era uma região com grande concentração de escravizados que garantiram a expansão cafeeira. Em uma sessão extraordinária e secreta, um semana depois, vereadores de Bananal, próxima a Carrancas, decidiram que o centro da vila seria protegido por quarenta soldados, que “nenhum escravo preto ou pardo possa seguir viagem sem passaporte de seu senhor” e pela maior vigilância nas senzalas. Era necessário impedir mais levantes e, sobretudo, punir com severidade os escravizados.
A maior punição do Império
O número de pessoas lideradas por Ventura Mina é incerto, talvez sessenta ou mais. No processo foram indiciados 31 negros, incluindo os cinco mortos. Dezesseis deles foram condenados ao enforcamento e executados em praça pública. Foi a maior condenação coletiva à pena de morte no Brasil Império. Na Revolta dos Malês, que ocorreu em Salvador em 1835, quatro escravos foram fuzilados e o restante teve a sentença convertida em açoites ou galés. Os fazendeiros esqueceram do prejuízo e escolheram o exemplo.
É cruel o caso do rebelde Antônio Resende, que escapou da morte, mas teve a companhia da inevitável enquanto respirou. O escravizado sobreviveu, mas foi obrigado a ser carrasco da forca de seus companheiros. E esse foi seu carimbo durante toda a vida, o carrasco escravizado, em prisões de Ouro Preto (de onde fugiu em 1835) ou em São João Del Rei (fuga em julho de 1848). Matou até morrer em uma prisão.
Segundo o historiador, os acontecimentos deram início a discussões de leis com punições mais severas contra escravizados na Câmara dos Deputados que resultaram “lei nefanda”, de 10 de junho de 1835, que “estabeleceu a pena de morte para escravos envolvidos no assassinato de seus senhores, familiares e prepostos.”
O motivo do levante
Mas de onde surgiu essa revolta? Para o historiador, a revolta e a Sedição de 1833 em Ouro Preto estão entrelaçadas. Ao que parece o sonho de liberdade foi alimentado por boatos a partir da divisão entre membros da elite política local e por desavenças entre o deputado Gabriel Junqueira e o comerciante Francisco Silvério Teixeira, um homem branco.
Entre os meses de março a maio do ano de 1833, um grupo de “caramurus”, como eram identificados os partidários da restauração do trono de d. Pedro I, tomou o poder em Ouro Preto. Esse grupo antagonizava com a família Junqueira, que também cultivava inimigos na elite de Carrancas.
“Nos autos, todos os réus justificaram a sua participação na insurreição por acreditar que estariam livres ao se associarem aos caramurus, pois estes haviam acabado com a escravidão em Ouro Preto”, afirma o autor. Era uma fake news. Praticamente todos os escravizados e testemunhas responsabilizaram Francisco Silvério, junto com Ventura Mina, pelo levante. Algumas testemunhas afirmaram que ele acompanhou, à distância, o primeiro assassinato. Quando estourou a revolta, em 13 de maio de 1833, as forças legalistas se preparavam para atacar Ouro Preto e retomar o poder.
Francisco Silvério Teixeira, homem branco, não foi condenado à morte. Passou dezenove meses preso. Tudo porque a família Junqueira não permitia a construção de uma estrada para facilitar o transporte de seus produtos.
Segundo testemunhas, os rebeldes de Campo Alegre disseram aos cativos da fazenda Bela Cruz: “vocês não costumam falar nos caramurus, nós somos os caramurus, vamos arrasar tudo”. O historiador ressalta que os motivos da revolta partiram da “leitura política que fizeram da dissensão entre as elites ao incorporarem a identidade caramuru; da crença de que a escravidão havia sido abolida em Ouro Preto pelos caramurus e que estes estavam matando os brancos; da liderança de Ventura Mina e a composição étnica dos insurretos”. Para os escravizados, o que importava era liberdade, essa chama que desabou sobre o barril de pólvora da opressão e explodiu em sangue negro e branco.