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Se eu tivesse de escolher apenas uma entre as milhares de fotos de Orlando Brito que retratam a brutalidade da ditadura de 64, escolheria essa aí, do coturno militar sobre a cabeça de brasileiros comuns. O ano foi o de 1976, e a ocasião, o desfile militar do 7 de setembro, em Brasília.
Foram 21 anos de autoritarismo, de adversários do regime cassados e caçados, torturados (alô, alô coronel Brilhante Ulstra e delegado Sérgio Fleury), mortos e desaparecidos a pretexto de defender a democracia ameaçada pelo comunismo. Curioso: eliminou-se a democracia para salvá-la.
Sete meses depois de flagrar o coturno militar sobre a cabeça de brasileiros humildes, foi a vez da câmara de Brito testemunhar o rolo compressor da ditadura, sob o comando do general-presidente Ernesto Geisel, fechar o Congresso e desembrulhar o que se tornou conhecido como “O Pacote de Abril”.
Uma emenda à Constituição, e seis decretos-leis alteraram as regras das futuras eleições. O mandato presidencial, de cinco anos, foi aumentado para seis. Metade das vagas de senador a serem disputadas em 1978 seria preenchida por nomes indicados pelo governo. Permaneceu indireta a eleição de governadores e prefeitos.
Brito sempre foi um profissional discreto, de poucas palavras, a não ser na companhia de amigos. Mas falava muito e alto pelas lentes de suas câmeras. Elas sempre estiveram a serviço da democracia e contra, mesmo que sutilmente às vezes, governantes que conspiraram para derrubá-la. Foi o caso de Jair Bolsonaro.
Tendo conhecido de perto os cinco generais-presidentes da ditadura de 64 (Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) e os sete civis que os sucederam (José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Temer), Brito dizia:
“Nunca vi um presidente como Bolsonaro”.
Exagerava. Costa e Silva foi tão ignorante quanto Bolsonaro; Médici, sob a máscara de bonzinho e popular, igualmente belicoso como Bolsonaro, com a diferença que mandava torturar e matar, coisa que Bolsonaro não ousou fazer, embora fosse a favor como tantas vezes admitiu sem um pingo de vergonha.
Chocava Brito o desrespeito de Bolsonaro ao que Sarney chamou de “liturgia do cargo”. Nenhum fotógrafo foi tão atento a detalhes e a símbolos quanto Brito. E disso dá prova a foto que eu escolheria para ilustrar o período de (des)governo de Bolsonaro, essa aí da estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes encarando o Palácio do Planalto.
Não fosse o Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos seus ministros, Bolsonaro teria posto a pique a democracia ainda não plenamente consolidada entre nós. Ela resistiu aos solavancos dos golpes tramados por Bolsonaro para anular o resultado das eleições de 2022, e ao vandalismo do ato golpista do 8 de Janeiro.
A estátua de frente para o Palácio do Planalto com uma espada em uma das mãos está ali desde 1961, mas naquele momento, e por aquele ângulo, só Brito a viu e registrou. Portanto, salve Brito! (Nenhuma alusão a Selva nem a Festa da Selma.)