Sinto muito, mas Bin Laden venceu
Este artigo foi publicado no Correio Braziliense em 11 de setembro de 2002
atualizado
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Um ano depois do atentado que destruiu as torres gêmeas em Nova Iorque, parte do prédio do Pentágono em Washington e matou quase três mil pessoas, quem se deu melhor até agora – o saudita Osama Bin Laden ou o norte-americano George W. Bush? O que o terrorismo da Al Qaeda representa ou os ideais que os Estados Unidos tentam representar?
Sinto dizer-lhes, a Al Qaeda e Bin Laden se deram melhor. Não importa, sequer, que a Al Qaeda pareça inativa e que seu líder esteja vivo ou morto – e caso viva, que passe a maior parte dos seus dias no fundo de alguma caverna na fronteira do Afeganistão com o Paquistão. A verdade é que eles venceram. Com a ajuda decisiva de Bush e dos seus pares.
Parto do princípio de que está provada a autoria do crime. Ele foi planejado e executado por militantes fanáticos da Al Qaeda. E que Bin Laden, como um dos cérebros da organização, tinha conhecimento prévio dele e o aprovou antes e depois. Que objetivos principais perseguia a Al Qaeda na inesquecível e trágica manhã de 11 de setembro de 2001?
Primeiro, matar o maior número possível de pessoas. Segundo, provar que a mais poderosa potência do planeta era vulnerável a ataques terroristas. Terceiro, disseminar o medo nos Estados Unidos e fora deles. Quarto, enfraquecer o modelo norte-americano de democracia. E quinto, aumentar no mundo o antagonismo aos Estados Unidos.
Todos os objetivos da Al Qaeda foram alcançados. É fato que o número de mortos nem de longe se compara com o número de japoneses mortos pelos Estados Unidos com as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki – algo como 200 mil. Aquele foi um ato de terrorismo de Estado concebido também para matar civis inocentes.
Jamais os Estados Unidos tinham sofrido um duro revés dentro de suas fronteiras. O 11/9 feriu o orgulho do mais fabuloso império da história da humanidade, desmoralizou a tão proclamada eficiência dos seus organismos de espionagem e de defesa interna e inoculou o medo no coração de cada norte-americano. O medo ficará para sempre.
Quanto à democracia à moda norte-americana, ela jamais será a mesma. Seus fundamentos estão sendo severa e progressivamente desfigurados desde que um atarantado Bush foi convencido no dia do atentado a retornar à Casa Branca e a assumir o controle da situação. Ele estava no interior dos Estados Unidos. E hesitou em voltar logo.
Com medo do terror ou a pretexto dele, e com a conivência até aqui da maioria opinião pública norte-americana tomada de fervor patriótico e influenciada pelos meios de comunicação, a administração Bush dedica-se a desrespeitar leis, liquidar prerrogativas legítimas dos cidadãos e violar direitos humanos dentro e fora dos Estados Unidos.
No âmbito interno, acelera-se a construção de um indisfarçável Estado policial. Ou melhor: de um Estado policial que tenta se disfarçar para não parecer com o Estado policial bancado em diversos países pela ex-União Soviética. No âmbito externo, o governo norte-americano esqueceu todos os escrúpulos e decidiu impor sua vontade a ferro e a fogo.
Legalizou-se a escuta telefônica e a espionagem na internet no caso de pessoas tidas pelo governo como suspeitas de terrorismo. Estrangeiros podem ser detidos sem acusação formal. Mais de mil e duzentos já o foram. Subverteu-se o princípio de que todos são inocentes até prova em contrário. Mesmo sem provas, alguns terão que provar sua inocência.
Criou-se a figura jurídica dos tribunais militares secretos para julgar atos de terrorismo. O direito dos réus à apelação foi suprimido. Nos últimos cinco meses, as ruas de Washington ganharam mais de 400 câmeras de tv para vigiar a população. Entre públicas e privadas, já existem em Nova Iorque mais de seis mil dessas câmaras.
Está em curso o recrutamento de milhares de funcionários prestadores de serviços a domicílio para que espionem seus semelhantes mediante remuneração e informem o governo a respeito de qualquer coisa estranha. Pretende-se montar uma engrenagem de espionagem interna capaz de superar até a que existiu na ex-Alemanha Oriental.
Fora dos seus limites territoriais, os Estados Unidos declararam guerra ao terror, devastaram um dos mais pobres países e se preparam para detonar uma guerra preventiva contra o Iraque do ditador Saddam Hussein. Acentuaram em todos os fóruns sua visão unilateralista do mundo. E passaram a exercitar sem escrúpulos sua supremacia global
O que aconteceu no Afeganistão não foi propriamente uma guerra. Foi um ataque brutal contra um povo que ainda luta a cavalo e se esconde em cavernas promovido do alto e à distância segura por uma formidável força aérea. Sabe-se hoje que milhares de combatentes talibãs foram executados a tiros e centenas morreram asfixiados dentro de containers.
A ordem dada pelo governo norte-americano a seus soldados foi curta e grossa: matar, simplesmente matar todos os integrantes da Al Qaeda ou suspeitos de pertencerem a seus quadros. Matar também os líderes do regime talibã que apoiavam a Al Qaeda. Cerca de 600 deles foram presos e os Estados Unidos se negam a julgá-los ou a soltá-los.
A guerra norte-americana contra o terror é uma guerra seletiva, maniqueista e difusa como a definiu o escritor mexicano Caros Fuentes. E, ao cabo, fracassará. É seletiva porque só atinge os chamados “eixos do mal” escolhidos pelos Estados Unidos. Como se não existissem outros “eixos do mal”, muitos deles fiéis aliados dos próprios Estados Unidos.
Os pilotos-suicidas do 11/9 e seus companheiros de aventura eram cidadãos da Arábia Saudita. O subsolo daquele país do Oriente Médio armazena uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Na superfície reina uma monarquia despótica, corrupta e atrasada que fecha os olhos ao terrorismo e abre os poços de petróleo aos norte-americanos.
A tolerância do regime saudita com o terror ameaça a segurança de boa parte do mundo. Mas o monarca saudita e sua corte seguem sendo tratados a pão-de-ló pelos presidentes norte-americanos. Afinal, os Estados Unidos consomem 18% da produção de petróleo saudita. E até a família Bush já ganhou muito dinheiro fazendo negócios com os sauditas.
A guerra contra o terror é maniqueísta porque as demais nações foram advertidas de que só lhes restam duas alternativas: perfilam-se aos Estados Unidos ou ficam contra eles. É também difusa porque o terrorismo não é assumido por nenhuma nação, não dispõe de exércitos e geralmente é obra de um grupo reduzido de pessoas. Ou até de uma só.
Timothy McVeigh, um branco de 33 anos, ex-combatente da Guerra do Golfo, era um cidadão norte-americano sem nenhuma notoriedade até que explodiu um prédio na cidade de Oklahoma em abril de 1995. Quis vingar o massacre de 80 membros de uma seita militarizada promovido dois anos antes por agentes do FBI na cidade de Waco.
Vingou-se. Matou 168 pessoas, entre elas 19 crianças, e feriu 674. Quando foi preso, classificou a morte das crianças de “dano colateral”. Foi julgado, condenado à morte e executado em junho do ano passado sem ter demonstrado o menor sinal de arrependimento. Entrou para a história dos Estados Unidos como seu maior terrorista.
O ato de McVeigh derivou de sua ideologia ultra-direitista e da centelha de loucura que há em todo terrorista. O ato dos comparsas de Bin Laden e outros tantos do mesmo gênero cometidos mundo a fora deitam raízes na pobreza, na injustiça, na discriminação, na falta de liberdade, na intolerância religiosa e na imposição de valores culturais.
Cada um a seu modo, João Paulo II e a ex-diretora do serviço de inteligência britânico Stella Rimington expressaram recentemente a mesma opinião a propósito da guerra contra o terrorismo. O Papa insistiu que “a História mostra que o recrutamento de terroristas se faz com facilidade nas regiões onde os direitos humanos são pisoteados”.
Rimington declarou que “os Estados Unidos não ganharão a guerra contra o terrorismo” pois uma guerra assim “não poderá ser vencida a não ser que se eliminem as causas do terror fazendo do mundo um lugar sem ressentimentos”. Infelizmente, “nunca haverá um mundo sem ressentimentos”, arrematou Rimington. Logo…
Logo o terrorismo jamais será varrido da face da Terra. Faz mais sentido, pois, combater suas causas do que agravá-las de maneira burra, estúpida e revoltante como o fazem os Estados Unidos – e, de resto, a comunidade de países ricos refratária à idéia de um mundo mais fraterno e mais justo. A conclusão é acaciana, ingênua, inócua e nada original?
Que seja! Se tivessem sido ouvidos unicamente por cínicos, avarentos e duros de coração, Maomé, Jesus Cristo, Buda e Confúcio não teriam convertido milhares de pessoas aos seus ideais de santidade. Nada mais óbvio, por exemplo, do que o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas ela é menos importante por causa disso?
Desde que se levantou um dia em algum lugar ermo e começou a andar ereto, o homem produziu fatos extraordinários que mudaram para o bem ou para o mal a vida neste planeta. Não é de todo inconcebível que seu instinto de sobrevivência o leve um dia a descobrir a fórmula de coexistir pacificamente com seus semelhantes e com a natureza.