Lula fez bem em receber o ditador da Venezuela, mas também fez mal
Fala laudatória e repleta de incoerências
atualizado
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Fez bem porque não se ignora um país vizinho com o qual se tem mais de 2 mil quilômetros de fronteiras, e com ele se compartilha a região amazônica. Porque a Venezuela é dona das maiores reservas de petróleo do mundo. Roraima depende dela para não ficar às escuras. E laços de amizade sempre ligaram os dois países.
Se dar as costas à Venezuela fosse o melhor meio de restaurar a democracia que Nicolás Maduro enterrou com a ajuda dos militares, a essa altura havia sinais de que isso estaria próximo. Bolsonaro rompeu relações e proibiu Maduro de pôr os pés no Brasil. Até pensou em invadir a Venezuela. Adiantou alguma coisa?
À exceção do ditador da Coreia do Norte, e de Putin ameaçado de ser preso depois da invasão à Ucrânia, os ditadores transitam livremente pelo mundo e fecham negócios. Ou o Brasil deveria se afastar da China, seu maior parceiro comercial? E os Estados Unidos da Arábia Saudita, um poço de petróleo a céu aberto?
Foram terroristas sauditas os autores dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos. Na ocasião, parte da família real da Arábia Saudita estava por lá. Todos os voos foram suspensos enquanto o governo, aturdido, decidia o que fazer. O avião da família real, porém, foi liberado para que ela voltasse ao seu país.
O jornalista Jamal Khashoggi, colunista do jornal americano The Washington Post, foi morto e esquartejado no consulado da Arábia Saudita, em Istambul, capital da Turquia, por ordem do príncipe Mohammed Bin Salman, herdeiro do trono saudita. Bolsonaro visitou o príncipe e posou com ele para fotos. “Realpolitik”.
O presidente francês Charles De Gaulle, um dos heróis da 2ª Guerra Mundial, visitou o Brasil quando aqui a ditadura de 64 mal começou. A Rainha Elizabeth II, da Inglaterra, desfilou em Londres de carruagem com o general Ernesto Geisel. Há pouco, o governo Biden afrouxou as sanções ao regime de Maduro.
Lula fez mal ao saudar Maduro com um discurso laudatório e repleto de incoerências. Talvez porque se sinta ainda em dívida com o espírito do coronel Hugo Chávez, antecessor de Maduro, e que ajudou Lula a se eleger presidente pela primeira vez. Chávez não mais largou o pé de Lula até morrer de câncer, em Cuba.
Certamente, o ditador venezuelano gostou de ouvir Lula dizer:
“Então [falando com Maduro], é preciso que você construa a sua narrativa, e eu acho que, por tudo o que nós conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você.”
Ditadura não é uma narrativa. É fato que há uma na Venezuela, e que Maduro é o ditador. Narrativa, geralmente, é algo que se constrói para esconder a verdade ou justificar o injustificável. Foi o que Bolsonaro fez nos últimos quatro anos. É o que os bolsonaristas fazem em relação ao frustrado golpe de 8 de janeiro.
Ao dar a palavra a Maduro, Lula o convidou a falar à imprensa livre “do Brasil e do seu país”. Aqui, a imprensa é livre, na Venezuela não é. Aqui, a oposição se organiza com liberdade, na Venezuela, não. Lula não pode tratar um ditador como democrata. Com ele, pode e deve se entender, mas não contemporizar.