Brito, o maior fotógrafo de sua geração, finalmente descansa em paz
Uma paz que falta aos que sobreviveram a ele
atualizado
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O maior repórter fotográfico do Brasil das últimas décadas não merecia morrer como morreu Orlando Brito. Nas poucas ocasiões em que esteve consciente ao longo de 32 dias de internação em hospitais públicos de Brasília, comentou mais de uma vez com médicos e enfermeiros: “Eu não mereço isso, não mereço”.
Foi bem tratado por seus cuidadores, mas com as limitações e falhas do serviço público. Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais à época do golpe militar de 64, cunhou uma frase repetida por décadas: “O melhor hospital de Brasília é a ponte aérea”. Hoje, Brasília tem ótimos hospitais, mas para quem tem muito dinheiro.
E Brito não tinha, nem seus colegas de profissão. A crise do jornalismo enquanto negócio agravou-se com o surgimento da internet. Empresas de comunicação mal administradas não souberam se reinventar, e ainda não sabem. Apelaram para o que sempre fizeram em momentos de crise: desqualificar o conteúdo.
A primeira vítima foram as redações, severamente enxugadas com a dispensa dos seus profissionais mais experientes. Se a internet deu voz a todos, inclusive aos idiotas, por que não daria espaço para imagens colhidas por quem tivesse um celular à mão? E os brasileiros têm dois. É só aproveitar o que as redes oferecem.
Uma vez, Adolfo Bloch, editor de revistas, a mais famosa delas “Manchete”, viu o escritor Rubem Braga escrever sua coluna semanal e reclamou depois: “Quer dizer, seu Braga, que eu lhe pago um alto salário para que o senhor escreva em menos de meia hora?”. Braga respondeu: “Escrevo em 40 anos”.
Um clique de Brito durava um segundo, mas continha tudo o que ele acumulara de sabedoria, sensibilidade e arte desde que começou a fotografar, aos 16 anos de idade. Morreu com 72. Nem isso, nem as dezenas de prêmios que recebeu, nem a passagem pelas redações mais importantes do país o pouparam dos cortes.
Para que fosse internado em um hospital público, foi preciso que seus amigos acionassem meio mundo, e que o ex-presidente José Sarney interferisse junto ao governo do Distrito Federal. Duas vezes foi operado depois de descoberto um tumor no intestino. Colocaram-lhe um tubo que mais tarde saiu do lugar.
Brito estava para ser operado pela terceira vez quando teve de ser removido para um hospital de Taguatinga, região administrativa de Brasília, porque a UTI do hospital em que estava fora requisitada para atender pacientes de Covid. Seu caso chegou a ser discutido por assessores do ministro da Saúde, mas ficou por isso mesmo.
Informado a respeito, o senador Ciro Nogueira (PP-AL), atual chefe da Casa Civil da Presidência da República, disse que tomaria providências, mas nada aconteceu. No início do governo Bolsonaro, Brito fora dispensado do único emprego fixo que tinha, na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).
Ele e Dida Sampaio, do jornal O Estado de São Paulo, outro gigante da fotografia que morreu há poucas semanas, foram agredidos uma vez por bolsonaristas na Esplanada dos Ministérios. Em reparação, Bolsonaro fez-lhes um gesto de afago chamando-os para um encontro no Palácio do Planalto. E foi só.
No exercício de sua arte, Brito nunca foi de esquerda ou de direita. Fotografou a posse de todos os presidentes desde 1968. Ninguém melhor captou Poder, Glória e Solidão dos governantes. João Figueiredo, o último general-presidente da ditadura militar de 64, contou-lhe segredos que Brito levou para o túmulo.
Nos seus últimos três anos de vida, Brito se dizia cada vez mais irritado com a mediocridade do jornalismo e da política nacionais. Quando viu Bolsonaro, no dia em que ele se elegeu, cortando carne para servir a um grupo de militares responsáveis por sua segurança, vaticinou: “Isso não pode dar certo, não dará certo”.
Repetiu o comentário ao ver o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), que carregava uma arma na cintura, pôr os pés sobre o couro do assento do Rolls-Royce fabricado na Inglaterra em 1952 e que conduziu desde então para a posse todos os presidentes da República: “Como uma coisa dessas é possível?”.
O ministro Carlos França, das Relações Exteriores, foi a única autoridade do governo que compareceu ao velório de Brito no cemitério Campo da Esperança. Que Brito descanse com a paz que falta aos que ficam!