Retratos apagados
Afrodescendentes enfrentam burocracia e descaso para conhecer suas histórias familiares
atualizado
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De onde vem sua família? Os ascendentes europeus, famintos por passaportes, conseguem construir sua árvore genealógica com muitas gerações, alcançando povoados no Hemisfério Norte. Já os afrodescendentes encontram uma árvore seca com raízes escassas. Desde a abolição, o Estado brasileiro negligencia e despreza a documentação dos escravizados.
Por que é tão difícil acessar esses documentos? Cultiva-se um mito. Em 1890, Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, ordenou que toda a documentação dos escravizados fosse enviada para o Rio de Janeiro para ser destruída. Maria Helena Toledo Pereira Machado, historiadora da USP (Universidade de São Paulo) contesta essa informação. O que existe é um descaso do Judiciário brasileiro, que perdeu boa parte desses arquivos.
“A Lei do Ventre Livre, de 1871, passou a obrigar os senhores a matricular os escravizados anualmente nos cartórios municipais. Rui Barbosa só queimou as cópias enviadas ao Rio”, relata a professora, autora de “O Plano e o Pânico” (Edusp). A motivação de Barbosa foi impedir que um grupo de fazendeiros requeresse uma indenização do Estado por prejuízos com a abolição.
Em suas pesquisas, Machado conheceu o tratamento dos cartórios com a documentação de escravizados. “Por um lado, não deixavam entrar, exigiam autorização judicial. Por outro, não havia a menor preocupação com a preservação, ficava tudo jogado. Já encontrei arquivos dentro de um galinheiro”, recorda. Felizmente, ela conta que a situação mudou nas últimas décadas e que há uma documentação riquíssima sendo revelada pelos pesquisadores.
Os obstáculos para acessar os arquivos cartoriais foram vivenciados pela socióloga Alessandra Laurindo. Ela organizou, junto com um grupo de pesquisadores, o livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”, com a documentação de escravizados na cidade do interior paulista entre 1870 e 1887. O cartório não permitiu o acesso às matrículas de compra e venda. Somente após uma articulação entre OAB, prefeitura, Câmara de Vereadores, Uniara (Universidade de Araraquara), a Academia Araraquarense de Letras e uma ação na Justiça, enfim os documentos foram liberados.
“Quando a gente começou a mexer nos documentos, entendemos o porquê da resistência: o sobrenome da família do cartório aparece nos documentos como compradora de escravos”, lembra. Para ela, o livro não se resume a uma investigação do passado. É uma maneira de recontextualizar o presente. “Os compradores e os vendedores dão nomes a prédios públicos, ruas e escolas. Eles são “eternizados”, diferente das pessoas invisíveis, que construíram a cidade e não estão em lugar nenhum”, reflete Alessandra, que tem o projeto de replicar sua experiência em outras cidades, em parceria com entidades ou prefeituras.
Três anos de investigação até chegar à família branca
Ela tem como aliado o cineasta Marcio Cruz, doutorando em cinema experimental em Londres. Sua pesquisa familiar o fez desembarcar no interior paulista, onde conheceu Alessandra. “Minha família sempre contou a história de um bisavô, que seria filho de um médico da região de Araraquara”. Desde 2022 sua busca passou por cartórios e arquivos públicos pela BA, SP, MG e pelo FamilySearch (empresa americana que oferece serviço de genealogia). Já alcançou sua quinta geração.
“A árvore genealógica é uma preservação de privilégios, utilizada para a manutenção da ordem monocrática e religiosa. No caso das famílias pretas, existe um apagamento. Você não rastreia apenas uma família, você reconta parte da história do país”, pondera. Sua busca revelou um sentimento de dor, mas também um processo de cura. “Ver o nome do seu antepassado num documento é pesadíssimo. Dá alguma satisfação encontrá-los, mas também te deixa extremamente fragilizado”, reflete.
Esses sentimentos contraditórios se repetiram ao encontrar a foto de um escravizador de seus parentes e acessar a história dessa família. Seu empenho também confirmou as raízes de nossa desigualdade. Enquanto a família branca teve propriedades, a família preta passou por dificuldades. O cineasta não quis revelar esse sobrenome por questões legais.
A professora Lucimar Felisberto, doutora em História pela Universidade Federal da Bahia, tentou caminhar por esse universo de papéis para escrever a história de seus parentes, retratada no livro “A Saga dos Felisbertos – Deslocamentos de uma família da Zona da Mata Mineira à Baixada Fluminense”. Ao invés de desconforto, sua busca aqueceu seu peito. “Essa é a minha história e ela passava pelo escravismo. Eu nunca procurei a dor, eu procurei vivências”.
Com os escassos registros encontrados no interior de Minas Gerais, desenvolveu seu projeto atado ao conceito da autoetnografia, método que une as experiências, as memórias pessoais e a pesquisa convencional. “Essa metodologia de escrita dá a possibilidade de sermos também os protagonistas da história”, conta.
Ela relata a maneira inusitada em que o sobrenome Felisberto entrou em sua família. “Quando uma tia minha foi se casar, ela deu o sobrenome de um patrão de seu pai, o que era muito comum. O agente cartorial discordou: ela não era filha dos brancos. Aí eles conversaram. Mas ela não é parente daquele Felisberto que veio lá de não sei aonde? perguntou o agente. E eles resolveram batizar todos os filhos de minha avó com o sobrenome de Felisberto”, relata. Naquele dia, uma nova linhagem foi inaugurada.
A busca pelo imaginário
O premiado fotógrafo mineiro Eustáquio Neves não conseguiu acessar os documentos de sua família. Só lhe restou a arte e o imaginário. Suas obras fotográficas passeiam pela memória e a negritude. A série “Navio Negreiro” é sobre a trajetória de uma pessoa na diáspora brasileira. Boa parte do seu trabalho não tem nitidez e as fotos carregam tempo. Sua última série, “Retrato Falado” é sobre seu avô, que ele não conheceu. “Sempre ouvi sobre esse homem, então ficou essa figura imaginária. Descobri uma família que tem um sobrenome dele, cheguei até me aproximar, mas eles não tinham muita informação”.
Ele teve uma experiência mística. Visitava uma fazenda de cana-de-açúcar em Nova Orleans, região marcada pela mão-de-obra escravizada durante os séculos XVIII e XIX. Ao entrar em uma casa, ele sentiu uma energia que começou na sua cabeça e logo governou seu corpo. “Veio uma crise de choro, uma coisa sem controle. Eu não sabia o que estava acontecendo. Acho que eram meus ancestrais”. Para Eustáquio, essa procura negra brasileira é um contínuo tatear em uma casa escura. Além da história oral, da documentação, existe também a percepção dos outros. Ele já ouviu a frase “você se parece com minha gente” diversas vezes em suas viagens, de pessoas da Nigéria, Senegal e Angola. Será que sua família veio de algum desses países? A resposta é um silêncio, seguido pelos ruídos perdidos de um navio a atravessar o Atlântico.