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A funcionária chama a testemunha para audiência e avisa que ela deve sentar-se na cadeira no centro da sala, em frente à juíza. A testemunha entra. Olha para as pessoas ao redor e faz o que a funcionária mandou: vira a cadeira para a sua direita e senta-se em frente a uma mulher branca e loira. Ela ignora a juíza, porque na sua cabeça, jamais poderia ser magistrada a mulher negra que pergunta seu nome.
Para uma mulher negra que atua no Judiciário, é comum ser confundida com empregadas domésticas em prédios de luxo. Perceber em festas ser a única negra servida – todos os outros negros e negras trabalham. É cotidiano alguém entrar em uma sala e questionar “onde está a promotora?”, apesar da mesa oferecer uma placa com seu nome e cargo. É um hábito carregar sua carteira funcional na bolsa como proteção. Em certa ocasião, um réu chamou uma juíza de macaca, por achar que não há justiça quando a sentença é deferida por uma mulher negra.
Para escrever o artigo “As vivências de juízas e promotoras negras: representatividade e racismo”, publicado em 2021 na Revista de Ciências Sociais da Universidade do Espírito Santo, a então mestranda Ingrid Marques Cabral entrevistou uma promotora de justiça do Maranhão, uma do Paraná, uma juíza federal da Bahia e outra do Estado do Rio Grande do Sul.
Cabral cita Grada Kilomba e Lélia Gonzáles ao dizer que “a mulher negra não é um sujeito universal: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa” e que “as mulheres brancas e negras são suscetíveis às violências de gênero, mas não se pode perder de vista que as mulheres negras brasileiras, são objeto de tripla discriminação, já que são a minoria (mulheres) da minoria (negras) nos cargos de alto prestígio social”.
Ocupar esses lugares é um instrumento contra o racismo? Para o ex-ministro Silvio Almeida – acusado de assédio por algumas mulheres, entre elas, Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial – o racismo não desaparece somente com a presença dessas mulheres nesses espaços de poder. É preciso construir mecanismos institucionais de promoção e igualdade. Entretanto, tampouco servem mecanismos sem ampla participação e eficiência. Talvez o letramento racial alimente esses órgãos – e não só para brancos.
Sem esse apoio institucional e isolada, é muito mais difícil lutar por direitos em uma estrutura racista, que cultiva a assimilação e o silenciamento das minorias em suas entranhas. “Ao contrário da crença do senso comum, o racismo durante o processo de ascensão social ficou ainda mais evidente. O que, mais uma vez, demonstra que seria no mínimo ingenuidade acreditar que a mera ascensão social seria suficiente para combater efetivamente o racismo”, escreve Raíza Gomes, autora do livro “Cadê a Juíza?”, citada no artigo.
Encontrei que a primeira juíza federal do Brasil foi uma mulher negra. Maria Rita Soares de Andrade estudou Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1926 e era a única mulher da turma. Fundou a revista femininista “Renovação”, que funcionou entre os anos de 1931 e 1934, Já no Rio de Janeiro, em 1938, foi consultora jurídica da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Maria foi a primeira mulher a integrar o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Em 1967, tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo de juíza federal, sendo titular da 4ª Vara da Seção Judiciária do Estado da Guanabara. Entre tantas conquistas, pode-se imaginar os preconceitos que ela enfrentou. O que mudou, quase 60 anos depois