Compartilhar notícia
Durante o monólogo “A Alma Imoral”, a atriz Clarice Niskier conta a seguinte história. Uma mulher pobre encontra uma galinha em seu terreno. Procura o dono pela vizinhança e nada. Devo comê-la? – pergunta-se. Sem resposta, vai à casa de um religioso com seus filhos à caça de resposta. É atendida por sua esposa, que promete passar a questão ao clérigo, que consultaria os textos sagrados.. Dois dias depois, a sentença. Segundo as escrituras, a mulher não pode comer a galinha. Ao atender a mulher faminta, a esposa diz: “Pode assar e dar a carne para seus filhos”. Quando a esposa conta ao marido o que fez, ele se enfurece e ela replica: “Você viu o que estava nos livros. Eu vi a mulher e seus filhos”.
Espero que minha memória não me traia. Vi essa adaptação teatral do livro homônimo de Nilton Bonder há muitos anos. Mas é uma história que volta quando a associo ao debate sobre drogas e aborto no Brasil, quando relaciono tradição e realidade, legalidade e desobediência.
Segundo o governo federal, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023 no Brasil, retratando a violência contra crianças e adolescentes no país. Ainda que o número tenha caído pela metade nos últimos 10 anos (foram 24 ml partos em 2014), há falta de atendimento e garantias para a realização de abortos seguros e legais para todas as mulheres.
Entre os casos mais recentes, ao menos duas mulheres vítimas de violência sexual tiveram seus abortos proibidos após portaria do Conselho Federal de Medicina negar o procedimento após 22 semanas de gestação. O ministro do SFT, Alexandre de Moraes, suspendeu a decisão do Conselho no último dia 17.
O aborto é legal quando a vida da gestante está em risco ou a gravidez é resultante de estupro. Entretanto, é mais um exemplo dos privilégios de nossa desigualdade. Enquanto mulheres de baixa renda sofrem para acessar o serviço público, mulheres ricas abortam livremente em clínicas privadas.
O tema fere os dogmas religiosos. Se padres e pastores pressionam seus fiéis dentro de suas igrejas contra esse direito, é uma questão dessas comunidades. Mas o Estado é laico. A realidade é injusta. Os abortos continuarão ocorrendo, por que não proteger essas mulheres?
No final da peça, Clarice Niskier pergunta à plateia se alguém deseja que ela conte novamente uma das parábolas. Conte mais uma vez, Clarice. Precisamos ouvir muitas vezes as histórias dessas mulheres – e ampliar o acesso a métodos contraceptivos e a educação sexual.