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ESPECIAL – A miséria, a exclusão e a fome nas ruas de Brasília

A capital que ostenta palácios também exibe o lado perverso da falta de acesso mínimo para a sobrevivência

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Contraluz de pessoa em situação de rua próximo ao Congresso Nacional
1 de 1 Contraluz de pessoa em situação de rua próximo ao Congresso Nacional - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Irinaldo, Cícero e Iron não se conhecem. Nunca se falaram. Nunca se viram. No máximo, podem ter se esbarrado, mas, invisíveis que são, não notaram um ao outro. Em pontos distintos da cidade, os três carregam em comum a rudeza da vida: são pessoas em situação de rua. No corpo e nas coisas que carregam, as marcas da exclusão.

O cearense Irinaldo Maia, tem 40 anos. Parece ter bem mais. Aliás, uma característica dessa população. Fome, miséria e exposição envelhecem e deixam rusgas antes da hora. Há 15 anos nas ruas, Irinaldo carrega um carrinho de supermercado. Ali, nas suas palavras, “está o que me resta da vida”.

Do bolso do surrado casaco, ele tira pequenas pedras. Diz que, na ausência de como se alimentar, as digere.

“Há três anos é assim. Não é fácil conseguir uma cesta básica ou algo para comer. Dignidade, não sei o que é faz tempo – conta Irinaldo, que já “puxou” vinte anos de cadeia, na Papuda, por um latrocínio que cometeu. Ele prefere as ruas a seguir para um abrigo.

“Abrigo? Jamais! Aquilo é uma prisão, com horário para tudo. Prefiro voltar para a Papuda”.

A Brasília que ostenta palácios também exibe o lado perverso da miséria, da exclusão e da fome nas suas ruas e sinais de trânsito. Conversar com as pessoas em situação de rua é ouvir histórias que chocam e relatos de que essa situação piorou nos últimos anos e ficou crônica com a pandemia. O resultado é mais gente nas ruas, sem casa, filhos a tiracolo, sem ter o que comer para apenas sobreviver, se manter de pé.

“A vida na rua é árdua, é sofrida. Mas tem que levar. É o que permite a situação. Antes, a doação nos permitia comer duas, três vezes ao dia. Hoje, não mais. Para arrumar uma marmita tem que andar 5 quilômetros e 6 quilômetros. No auge da pandemia, a gente até escolhia. Hoje, se achar um prato de arroz é como estar comendo caviar” – contou Iron Martins, de 64 anos, que está há um ano na rua e passa boa parte do tempo nos arredores do Museu Nacional, com companheiros que dividem com ele se drama, e onde dorme em barraca.

“Essa não é uma experiência. É uma condição imposta” – resume Iron.

Os sinais exteriores da exclusão e do descaso levam imagens diferentes nas ruas, como as barracas e as “placas” de papelão, onde essa população exibe suas necessidades e pedidos de socorro. Nos sinais de trânsito, a insegurança alimentar aparece à frente dos motoristas e dos carros, nos cartazes e mensagens exibidos pelos excluídos. .

“Por favor! Estou sem alimento em casa. Me ajude a comprar uma cesta básica. Tenho cinco filhos”.
Ângela Souza Maria, do Maranhão para Brasília, tem apenas 33 anos e surge nos sinais com três crianças pequenas e um apelo numa dessas mensagens.

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“Me ajude. O desemprego me atingiu. Aceito doação de cesta básica, ou o que Deus toca no seu coração. Meu nome é Ângela, tenho três filhos e necessito de sua ajuda. Aceito doações, roupas alimento e material de escola.”

Na frente dos supermercados, grupos de sem-teto e sem alimento abordam os clientes em busca do consumo mínimo, aquele suficiente sem comprometer as necessidades essenciais.

Segurança alimentar é o direito ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente sem comprometer as necessidades essenciais. O Brasil de hoje passa longe de cumprir à risca o que é prescrito nesse conceito. E não é da capital do país que vem o exemplo de reversão desse quadro.

O centro do Poder, que dita para onde vai toda a riqueza acumulada no país, ao menos a declarada, não faz seu dever de casa.

 

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A psicóloga Juliana Castro é a responsável pelo Centro POP de Brasília, que recebe, cuida e ampara cerca de 300 pessoas em situação de rua de Brasília. O centro é vinculado à Secretaria de Assistência Social do Distrito Federal. Ela atesta esse aumento de pessoas nas ruas nos últimos meses e convive com brasileiros que vieram de outros estados tentando mudar e vida e, na capital acabaram ficando nas ruas.

Há outros que viviam já nas ruas em outros estados e decidirem seguir caminho para Brasília. E até “pessoas da antiga”, miseráveis que estão voltando.

“Uma coisa que a pandemia trouxe foi a redução da possibilidade de sustento dessas pessoas, que, antes da pandemia, conseguiam lavar carro para sobreviver, trabalhavam de vigia. A renda diminuiu. A sobrevivência na rua com a pandemia está diferente. Essas pessoas ganham menos dinheiro do que antes para sua alimentação, higiene pessoal. Tem gente que perdeu casa e emprego” – contou Juliana Castro ao Blog do Noblat.

O centro que dirige oferece café da manhã, almoço e lanche à tarde. Lá, as pessoas tem lugar para tomar banho, lavar roupa e guardar seus pertences. E ofertam ainda atendimento psicossocial e acesso à documentação básica.

“A pandemia, que atingiu diretamente a economia, pegou na ponta final dos que não tem acesso a bens econômicos. Uma coisa é tirar a carne vermelha do prato de uma pessoa, mas trocar por frango. Outra coisa é tirar o que a pessoa tinha por nada mais”.

Também em situação de rua, Cícero não quer aparecer nessa história. Pede que seu rosto não seja identificado.
“Prefiro não. Só isso” – diz o brasileiro de 40 anos que já fez de tudo um pouco e vive de bicos, quando esses trabalhos aparecem.

Nas ruas, ele circula pela Praça dos Orixás, à beira do Lago Paranoá, espaço que guarda a prainha e estátuas de orixás. Um ponto de referência das práticas religiosas de matriz africana. As pessoas em situação de rua se sentem acolhidos ali.

“Mas é frio e sofrimento viver nas ruas. A gente sabe como é” – contou Cícero.

As pessoas acabam nas ruas por razões diversas. Problemas na família, nem sempre estruturada e a falta de vínculos, são fatores recorrentes. Agregue alcoolismo, droga, questões de saúde mental.

Primeiro ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no Brasil, o hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG) conduziu por seis anos e dois meses o Bolsa Família, política de sucesso no combate à pobreza e desigualdade e extinta por Jair Bolsonaro. Para ele, o país vive hoje uma “tragédia humana e social” e bastante dramática.

“Há um processo geral de empobrecimento nas cidades maiores. Essa tragédia humana e social aparece com maior força e maior número de pessoas. Se percebe claramente o empobrecimento geral do país. O desmonte da agricultura familiar, a falta de projeto de desenvolvimento regional, o aumento assustador do subemprego e o achatamento dos salários” – disse Patrus Ananias ao blog.

“A pobreza é assustadora. Uma questão se parecia superada. Retiramos o Brasil do Mapa da Fome, com avanços notáveis. Há uma falta de compromisso com a vida e o bem comum. Estamos assistindo a um desmonte das políticas públicas”.

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