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Mães libertas, filhos escravizados

Pode a Justiça impedir que uma mãe fique com sua filha? Se for uma ex-escravizada tentando libertar seu filho, sim

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mãe e filho
1 de 1 mãe e filho - Foto: Reprodução redes sociais

Lucrécia tinha um sonho e um suor: libertar sua filha Margarida da escravidão. Alforriada, a mãe conseguiu juntar 300 mil réis com seu trabalho e, com ajuda de advogados abolicionistas, entrou com uma ação para comprar o abraço da filha, escrava do major João Antônio Dias. Porém, nos esconderijos de seus artigos, a lei sempre guarda favores aos poderosos.

O militar concedeu a liberdade gratuitamente, mas solicitou ser nomeado tutor para garantir uma educação adequada à menina de 14 anos. Na prática, estendeu a escravidão de Margarida até a maioridade, aos 21 anos. Os abolicionistas nada puderam fazer. O convívio entre mãe e filha tinha sabor de sonho amargo.

O caso passou na cidade de São Paulo, ao redor dos anos 1880. A abolição chegaria no final da década somente, mas a liberdade dos negros já era uma teimosa realidade. Por isso, os escravizadores usavam a tutela de menores para postergar o inevitável e manter o status quo. Com a justificativa de oferecer melhores condições de vida aos jovens escravizados – diziam-se benfeitores –impediam crianças de estarem com suas famílias. Com o respaldo dos juízes do período, o mecanismo foi amplamente utilizado pela classe alta paulistana após o maio de 1888 e assim, garantiu mais alguns anos de trabalho forçado para crianças e adolescentes.

Essa é apenas uma das histórias e análises do artigo “Mães libertas, filhos escravos: desafios femininos nas últimas décadas da escravidão em São Paulo”, de Marília Ariza, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e publicado na Revista Brasileira de História. Ela narra as estratégias e as disputas de mulheres negras e livres pela emancipação de seus filhos a partir de processos judiciais e os obstáculos para alcançar esse propósito.

Para essas mulheres não bastava a poupança alcançada com trabalho árduo ou assumir enormes dívidas – que certamente as jogavam à pobreza – para comprar a liberdade dos filhos. Era preciso desafiar a Justiça. Nesse não-lugar para pobres e pretos, elas recebiam apoio de abolicionistas. Mas também formavam alianças com antigos senhores ou novos patrões, fazendo acordos cotidianos para cultivar os laços familiares e os cuidados maternos. E quando possível, a fuga era um rio que alentaria a maternidade.

Essas mulheres “capitaneavam com enorme fôlego empreendimentos familiares que envolviam diversas etapas e grande comprometimento: conquistar a própria liberdade; assegurar o direito sobre os filhos; arranjar sobrevivências como famílias libertas; lidar com a imposição de tutelas e soldadas que causavam novas fissuras em seus vínculos familiares”, resume Ariza.

O intelectual e jornalista Luiz Gama, era também advogado (segundo novos documentos, chamar Gama de “rábula” foi uma forma de desmerecê-lo). Ele foi proibido de frequentar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e estudou por conta própria.  Libertou centenas de pessoas da escravidão. Em 1879, ele representou Vicencia no pedido de liberdade de sua filha, Joanna, escravizada pelo francês José Cazes.

Apesar do pagamento de 500 mil réis, Cazes mudou-se para o Rio de Janeiro e levou a menina de 8 anos. Gama intercedeu, expondo a imoralidade do francês e exigindo o retorno de Joanna. O juiz de São Paulo solicitou a apreensão de Joanna. Entretanto, autoridades do Rio de Janeiro embargaram o pedido. Após 11 meses de petições e adiamentos, Vicencia vencia a ação. Mas não houve final feliz. “Embora vivendo na mesma cidade, as duas seguiram separadas, uma vez que o curador-geral de Órfãos determinara, em princípios de 1881, sem maiores alegações ou justificativas, que a menina fosse dada à tutela e soldada de terceiros”, relata a autora.

São histórias sobre privilégio e desumanização. Como escreve Ariza, o contexto favorecia a valorização das representações da maternidade. Ser mãe era direito e dádiva – das mulheres brancas. Por que as mulheres negras deveriam se igualar? Era um debate que passeava nos salões desde a promulgação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro de 1871.

Donos de terras reclamaram de prejuízos, defenderam a “sacralidade da relação materna” e que a “libertação do ventre escravo instalaria o caos entre as famílias, instigando a inveja de mães contra seus filhos libertos”. Os abolicionistas argumentavam que a escravidão suprimia o direito inalienável de todas as mães. As mulheres negras venceram. Mas até hoje parecem pagar o preço pela liberdade de seus filhos.

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