Industrialização e escravidão
No século XIX o Rio de Janeiro era uma cidade com muitas sapatarias e muita gente descalça
atualizado
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Desesperado, Ricardo pegou uma faca e tentou degolar-se. A morte era um alívio. Há um ano trabalhava com os ferros nos pés na fábrica de chapéus Braga & Rocha, no Rio de Janeiro. Foi impedido por Thomas Rocha, mestre manufatureiro e capataz, que castigou a tentativa de suicídio com golpes de vergalhão. Ricardo era só cólera e vingança. No dia seguinte, desferiu duas enxadadas na cabeça de Rocha. Tentou fugir, mas lhe alcançaram. Foi condenado a quinhentos açoites e a levar um ferro no pescoço por seis anos. Era o ano de 1852.
Indústria rima como escravidão? Os livros ensinam que o capitalismo floresceu na Europa com a exploração do trabalhador livre. No Brasil, o processo de industrialização teria sido potencializado com a chegada dos imigrantes europeus. Será que o último país a promulgar a abolição inventaria uma maneira de conjugar o início de seu desenvolvimento industrial com a violência contra negros e negras?
Esse é objeto de “O Nascimento da Indústria no Brasil: economia escravista, fábricas e capitalismo no século XIX (1808-1870)”, dissertação de mestrado de Matheus Sinder na UFF (Universidade Federal Fluminense). O trabalho investiga o papel dos escravizados no princípio do processo fabril e as dinâmicas e contradições desse modelo. E defende que o período integre os estudos sobre o tema, como uma das fases da história da industrialização no país.
A chegada da família real seria o pontapé dessa história, já que qualquer atividade fabril estava proibida desde 1875. Os 24 mil portugueses que desembarcaram no Rio entre 1808 e 1821, segundo o censo da época, criaram um grande mercado consumidor. Fábricas urgiam e trabalhadores eram necessários. Com a proteção e os incentivos fiscais da Corte, traficantes e escravizadores transformaram-se em donos de pequenas indústrias, nas cidades de Belém, Recife, Salvador, São Luís, Niterói, Campos dos Goytacazes e outras.
No Rio de Janeiro, por exemplo, havia 34 fábricas em 1844. Em 1865 saltaram para 591. O setor de vestuário e limpeza, concentrava metade do setor. As fábricas de fumo guardavam 18% da produção total. A atividade portuária era alimentada por fábricas de graxa, velas, cordoarias e oficinas artesanais de calafates, caldeireiros, carpinteiros, ferreiros, serralheiros e torneiros.
As fábricas de charuto se instalavam no interior da Bahia; as olarias e fábricas de cal impunham-se no interior do Maranhão. A maior parte da produção abastecia o consumo regional, e o restante era vendido para outras províncias. “A dinâmica fabril é um agente da integração dos mercados regionais no Brasil em meio a consolidação da economia escravista”, afirma Sinder.
Procurava-se trabalhadores especializados. Nos jornais, ao invés de anúncios de emprego, serradores ou carpinteiros escravizados eram requisitados ou oferecidos. Os escravizados desenvolviam as mesmas tarefas que os trabalhadores livres. Uns recebiam açoites, outros recebiam salários.
E a liberdade vestia a escravidão. Uma companhia norte-americana instalou-se em Magé (RJ) em 1849 para fabricar tecidos de algodão. Nela trabalhavam 100 operários livres, a maioria estrangeiros. Ela produzia panos grossos utilizados como vestimenta dos escravizados. E anunciava: “próprio para roupa de preto por ser muito forte, servindo também para sacos”.
Era um mercado restrito e simbólico. “O colete, o sapato, o sabão, o tipo de chapéu, o cigarro, o charuto, a carruagem entre quase todas as outras mercadorias manufaturadas são elementos não apenas de distinção social mas também definem e marcam visualmente no cotidiano da vida do século XIX quem é livre e quem é escravizado”. O cachimbo foi abandonado pelos brancos porque era um costume africano. O charuto distinguia.
Muitas fábricas, muitos produtos, mas os negros e negras escravizadas, a maioria da população, consumiam apenas parte desses bens. O francês Jean Baptist Debret, que integrou a Missão Artística Francesa em 1817, ficou estupefato. “O europeu que chegasse ao Rio de Janeiro mal poderia acreditar, diante do número considerável de sapatarias, todas cheias de operários, que esse gênero de indústria se pudesse manter numa cidade em que os cinco sextos da população andam descalços.”