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Eventos apostam em redução de danos, ação abandonada por governos

O falso moralismo e o preconceito emperram o debate e as políticas públicas para as drogas

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Brasília (DF), 05/06/2016 – Festa eletrônica Só Track Boa. Lo
1 de 1 Brasília (DF), 05/06/2016 – Festa eletrônica Só Track Boa. Lo - Foto: Leonardo Arruda/Metrópoles

Em tempos de conservadorismo nas políticas de drogas no Brasil – e o retrocesso da PEC 45 batendo de frente com o julgamento sobre porte de maconha no STF -, falar sobre redução de danos como política pública é utopia. Entretanto, a prática se consolida em eventos privados pelo país. A lógica é simples: prevenir e garantir a saúde das pessoas.

Acompanhei uma ação durante um festival de música eletrônica que ocorreu no centro de São Paulo no mês de maio, onde tendas de acolhimento com equipes de psicólogos foram montadas para atender ao público. Há uma triagem entre pessoas perdidas, denúncias de assédio ou descriminação e redução de danos. A pessoa é levada para um local reservado e conversa com o profissional, toma uma água, come uma fruta. Na maioria dos casos, em menos de meia hora a pessoa voltou à festa.

A psicóloga Thays Veridiano conta que os atendimentos se concentram em casos de ansiedade, desconexão da realidade e pensamentos paranoicos e persecutórios. “É muito comum as pessoas não saberem os efeitos da droga que tomam. Tive um caso em que uma pessoa usou ketamina e achava que não conseguia respirar. Mas esse é um efeito de um anestésico. Nosso trabalho então é conversar, criar uma identificação, acalmar e convencer que aos poucos ela vai melhorar porque o efeito vai passar”, explica.

Mas não é um trabalho somente receptivo. Os psicólogos percorrem a festa, procurando diagnosticar pessoas que precisem de ajuda e levando-as, caso necessário, para a tenda.

Veridiano destaca que seu trabalho não se resume ao período do evento. Os profissionais pegam os contatos das pessoas, de um amigo ou familiar, acompanham até um carro de aplicativo e enviam mensagens para saber se o paciente está bem. “Não é só virar as costas e acabou”, atenta. Nos casos mais complicados, como desmaios, a pessoa é levada até o ambulatório do evento.

Há também a distribuição de folhetos informativos – que explicam os efeitos de cada droga – e kits de redução de danos para maconha (filtro e seda mais fina) e drogas inaláveis, como canudos de plástico, para que o usuário não use cédulas, expondo-se a doenças.

Na festa não havia testagem de substâncias, algo recomendado por especialistas. Muitas “bad trips” e mal-estares vêm das impurezas da droga consumida. A pessoa pode passar mal caso seja alérgica a uma substância presente em um entorpecente adulterado. Conhecendo a composição verdadeira a pessoa pode decidir se irá usá-lo ou não.

A redução de danos são estratégias para evitar doenças sexualmente transmissíveis, internações ou mortes por uso de drogas. A prática teve início na década de 1920, na Inglaterra. Em 1989 a cidade de Santos-SP foi pioneira nesse atendimento, ao distribuir seringas para uso seguro de drogas injetáveis, visando a prevenção do HIV.

O uso de drogas psicoativas está muito associado às festas e a cultura de música eletrônica (as raves do início da década de 1990). Entretanto, hoje o cenário é outro. Segundo Veridiano, é muito comum a presença de estimulantes como o MDMA em festas de música sertaneja. Ela lembra também que a redução de danos trata casos de alcoolismo.

A psicóloga Maria Angélica Comis – ex-coordenadora da ONG É de Lei, que atuava na Cracolândia – participou em 2011 da primeira experiência de redução de danos em festas, bancada por um edital do Ministério da Saúde. Desde então realizou capacitações com produtores e redutores de danos “Hoje a gente tem cerca de 40 coletivos no Brasil, com grande participação de universitários. É ótimo porque é uma galera que multiplica o conhecimento e o alcance da Redução de Danos”, explica.

Grandes festivais e festas abraçaram a proposta e oferecem tendas de acolhimento. Comis alerta, entretanto, para a precarização do trabalho. Segundo ela, produtores desejam cuidar do público e evitar possíveis boletins de ocorrência e crises de imagem, mas alguns não pagam um valor ideal pelo serviço. “Já vi organização querer pagar com um ingresso para a festa. Apesar da importância, normalmente a equipe é contratada com o dinheiro que sobra. Eles pagam um cara para ficar no bar durante 14 horas. O redutor de danos tem uma carga horária menor. Então, precisa de mais gente”, aponta.

Comis conta sua experiência em uma Virada Cultural em 2016, quando atuava como coordenadora de políticas públicas sobre álcool e drogas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, na gestão Fernando Haddad. Foram instaladas três tendas de redução de danos. ‘Foi um fenômeno, principalmente para a classe média, que se surpreendeu ao ver o poder público oferecer esse tipo de serviço. Mas o Haddad perdeu e nas últimas gestões a prática foi abandonada, seja em festas ou na Cracolância”, critica.

No país da desigualdade, a questão das drogas não fica ilesa. O atendimento de redução de danos, mais humanizado, fica à disposição das festas de classe média, mesmo que pontualmente, mas é pouco ofertado à população pobre. A maconha que os ricos fumam vem de plantações particulares, enquanto a maioria fuma o “prensado”, que leva para o pulmão amônia, insetos e mofo. Reduzir os danos é também controlar a qualidade da droga.

“A gente precisa que isso seja política pública. E que aconteça em todos os eventos festivos do município”, propõe Comis. O deputado Eduardo Suplicy (PT- SP) protocolou em fevereiro desse ano um projeto de Lei 98/2024 que institui a política estadual de redução de danos. O texto já foi protocolado, mas ela é realista sobre a possibilidade de aprovação: “Creio que será difícil de ser aprovado, tendo em vista o preconceito sobre o tema”, finaliza.

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