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Entrevista: “Levo para a Alesp os problemas que sempre cantei”

Leci Brandão relembra sua trajetória política, suas pautas e a relação com bolsonarismo

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1 de 1 Foto colorida Leci Brandão - Metrópoles - Foto: Reprodução/Instagram

Marcelo D2 comandava o show em homenagem a Arlindo Cruz durante a Feira Preta em um início de noite de maio no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Com Arlindinho e Maria Rita, desfilavam os sucessos do mestre. O rapper carioca chama mais uma convidada. Surge o corpo frágil de uma mulher negra apoiando-se em um assistente, os passos lentos e calculados. Ela pega o microfone e dispara um boa noite com força ancestral. Canta um samba com uma potência intacta. A canção termina e ela brada sobre as alegrias, as injustiças e a luta das mulheres, dos negros e dos periféricos. É Leci Brandão no palco.

Foi nesse momento que decidi entrevistá-la. É por isso que ela me recebe com um café em seu gabinete na Alesp, denominado Quilombo da Diversidade. Aquele foi o primeiro show da compositora carioca após meses lidando com problemas vasculares. Desde então, vida normal entre shows e as atribuições do mandato – o quarto consecutivo, desde 2010. No papo, que passou de uma hora, um pouco de seu percurso político e a relação entre a deputada e a compositora.

Leci recusou os primeiros convites do PCdoB para se candidatar. Preferia manter a carreira e dar seus recados com suas canções. “Eu sempre fui da esquerda, sem saber que era da esquerda. Sempre fui uma pessoa censurada e criticada por vários posicionamentos. Mas eu não tenho formação. O que eu iria fazer dentro da Assembleia Legislativa?” O cantor Netinho de Paula, na época vereador, e o deputado Orlando Silva foram algumas das pessoas que mais a incentivaram.

Foram seus orixás que ajudaram na decisão. Em uma visita a um terreiro, uma entidade a provocou a encarar uma nova jornada. “Ele falou: você já fez muita coisa, já lutou muito, já defendeu tantas coisas, mas você tem que ter um outro lugar. Aceite o desafio, não vou esquecer nunca essa frase”, relembra.

Foi durante a campanha que avisaram-na que teria poucos recursos. Não teve dúvidas e foi para rua. Vestiu camisa e calça brancas, um tênis All-Star e partiu para os pontos mais movimentados da capital. Era uma confusão. As pessoas esperavam uma roda de samba, ganhavam um santinho com seu número. Foi eleita com 86 mil votos. Ela credita sua votação à sua carreira musical e sua participação como comentarista de Carnaval na TV Globo. “Eu humanizava o desfile, falava o nome do mestre de bateria, da baiana, das pessoas que fazem o desfile, não das celebridades. Tenho certeza que o povo do samba e o povo do santo me elegeram”, analisa.

Imediatamente após receber a notícia da eleição, telefonou aos prantos para sua mãe. A senhora que criou os filhos varrendo salas de aula, limpando banheiros e residindo em escolas públicas do Rio de Janeiro tinha uma filha eleita deputada. Saudosa, Leci diz que aprendeu tudo com a mãe, que sua sabedoria é uma herança materna. E que sente muita falta dela, falecida em 2019.

A chegada à Assembleia foi cercada de desconfianças. Sambista, carioca, mulher, preta, homossexual e sem formação? Era muita informação para uma casa que recebia a segunda mulher preta em sua história. Nas conversas com seus colegas, no cafezinho, a música era o tema principal, jamais questões legislativas. Ela lembra que um jornalista chegou a perguntar se teria samba no gabinete e se mulatas eram assessoras.

“Mulatas? Não, nós somos oito negras e eu sou uma delas”, respondeu. A situação começou a melhorar com sua participação nas comissões. “Quando comecei a colocar minhas ideias, a debater e a me posicionar, sempre com muita calma e respeito, os deputados me olharam de uma forma diferente.”, recorda a compositora, que chegou a integrar as comissões de Educação e Cultura, Direitos Humanos e Mulheres.

De onde vem a plataforma política de Leci? Ela conta o que fez após a eleição: “Eu peguei todos os meus LPs e botei em cima da mesa. Peguei uma folha de papel e fui anotando tudo o que as canções falavam, dos problemas sociais. Isso aqui tem a ver com o cidadão, com a mulher, com LGBT. Isso aqui é dos orixás, isso aqui é do trabalhador. Tudo aquilo que eu cantei, eu quero agora colocar pra valer, sabe? Em termos de trabalho, de defesa, de discurso. Porque eu sempre fiz da arte uma forma de defender as pessoas”. Uniu suas músicas com o conhecimento técnico da equipe de assessores que formou em seu gabinete e segue na casa até hoje. Sempre enfrentando preconceito de uma maioria de homens brancos.

Isso fica evidente em sua atuação na Assembleia. São projetos de Cultura e Educação em defesa da negritude, mulheres, LGBTQIA+ e religiões de matriz africana. Com eles, entidades e organizações civis se transformam em patrimônio cultural do estado, como o grupo Ilú Obá De Min; quilombos e associações religiosas são declaradas de utilidade pública, o que permite, por exemplo, participar de programas de fomento estaduais. A criação de datas comemorativas que entram no calendário cultural de São Paulo, como o Dia do Sambista, o Dia do Funk ou a Semana do Hip-Hop.

Ela se orgulha da criação da Medalha Theodosina Ribeiro, um prêmio que, desde 2012, homenageia mulheres – de qualquer cor –  de movimentos sociais, culturais e religiosos. Theodosina foi a primeira vereadora da Câmara paulistana (1970, com a segunda maior votação) e a primeira deputada estadual negra paulista (1974). Filósofa e advogada, permaneceu na ALESP por três mandatos. É um legado de Leci, que permanecerá na casa mesmo sem sua presença.

Um de seus primeiros projetos aprovados foi punir administrativamente o racismo ou preconceito religioso no funcionalismo público. “Para evitar a perseguição de quem era do candomblé, da umbanda. Talvez fosse menor do que hoje”. Isso a fez lembrar de sua relação com a extrema direita. A campanha de 2017 foi muito dura. Nas redes sociais, fake news investiram no preconceito religioso, chamando-a de macumbeira que sacrificava animais. Foi eleita com 68 mil votos, a menor votação em suas quatro eleições.

Ela recorda como o clima mudou com a chegada da onda bolsonarista na ALESP em 2018: “o Brasil ficou transtornado com a presidência antiga, que graças a Deus acabou. Ou era da religião deles ou era um inimigo perigoso. Na Assembleia tinha muita confusão, muita ofensa, palavrão. Achavam que podiam xingar as mulheres, xingar as mulheres de esquerda, xingavam a bandeira do PCdoB. Eu falava com eles do meu jeitinho… Eu gosto muito de usar o pequeno expediente, que são cinco minutos, mas em cinco minutos eu dava o recado”.

Em uma sessão, o deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei (União Brasil), cassado em 2022, acusou seus colegas de receberem dinheiro para votar um projeto que beneficiava auditores fiscais. E afirmou que Leci era uma coitada porque tinha recebido apenas mil reais. “Aí eu falei, o deputado, o senhor é mamãe, falei, não é? Pois é. Então fale pra sua mãe que você foi leviano, entendeu? No meu jeitinho”

“Lembra quando o pessoal acampou aqui? [Os acampamentos golpistas ficaram ao lado do QG do Exército, próximo ao edifício da ALESP]. Ninguém podia passar e as pessoas estavam com medo de vir de vermelho ou outras cores. No plenário eu discursei: eu vou vir à Assembleia de vermelho e quero ver quem vai encostar um dedo em mim. E tem mais: tem que tirar essa faixa ao lado da Assembleia que diz “Fora comunistas”. A compositora de “Zé do Caroço” afirma que a legislatura atual está melhor. Ao menos as ofensas gratuitas contra a esquerda findaram.

A primeira pergunta da entrevista foi “qual sua avaliação do governo Lula?” Queria sua opinião sobre a PL do aborto, as críticas de parte da esquerda ao identitarismo. Seja pela ginga política ou proteção de seus orixás, ela respondeu: “Você sabe que eu sou uma pessoa que tem um lado. Eu sempre fui da esquerda, sem saber que era de esquerda. Eu sou uma artista popular e estou deputada, entendeu?” E passou a narrar o início de sua trajetória política. Respeitei, apesar do instinto exigir debates e polêmicas. Há que se chegar no sapatinho com a velha guarda. Em setembro ela comemora 80 anos. Já está preparando a festa? “Não, eu não gosto muito de comemorar aniversário”, concluiu.

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