Entrevista: Extrema-direita construiu uma Israel que não existe
Professores Misha Klein (Universidade de Oklahoma- EUA) e Michel Gherman (UFRJ) dissecam a relação entre bolsonarismo e judaísmo
atualizado
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A declaração de Lula, comparando o governo Netanyahu às práticas nazistas provocou um debate mundial. Sobretudo, despertou a fúria da extrema-direita brasileira, que até pedido de impeachment protocolou. “Lula caiu em uma armadilha e apertou um botão que explode tudo”, afirmam Misha Klein, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Oklahoma (EUA) e Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ.
A armadilha em que Lula escorregou é comum a diferentes setores da esquerda: participar do debate a partir de categorias e lógicas definidas pela extrema-direita. “O que é sionismo, a esquerda incorpora. A extrema direita define o que é judeu, a esquerda incorpora. A direita está nadando de braçada”, crítica Gherman, autor do livro “O Não Judeu Judeu – A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”
Os acadêmicos apontam a noite de três de abril de 2017, quando Jair Bolsonaro fez um discurso na sede da Hebraica, no Rio de Janeiro, como a pedra fundamental da relação entre a extrema-direita e a comunidade judaica no país. Em seu discurso, ele antecipou sua política genocida contra os indígenas e foi racista, dizendo que negros eram pesados em arrobas.
Dentro do auditório, pessoas com bandeiras e camisetas de Israel apoiaram Bolsonaro. Fora, pessoas protestaram, chamaram-no de fascista, usando as mesmas camisetas e bandeiras. “Ali a gente começa a perceber que esses dois símbolos são tratados de maneira completamente diferentes”, lembra Misha.
Para Gherman – obrigado a abandonar um debate com alunos da PUC-RJ logo que estourou o conflito por criticar o governo Netanyahu -, a extrema-direita se apoia na construção imaginária de um judeu branco, religioso, armado e neoliberal. “O trágico é que são referências historicamente antissemitas, que descreviam os judeus como inimigos, donos do mundo”, mas que foram positivadas por esse campo político.
“Não tem nada a ver com o judeu. São elementos conservadores usados politicamente. A extrema-direita está pouco interessada na diversidade do Estado Israel atual. Perceba que eles nunca falam em democracia. Estão interessados nesse lado autocrático” explica Klein. Vale lembrar que em Israel o aborto e maconha são descriminalizados, o que deixaria qualquer bolsonarista aturdido.
Judeus, eles não veem qualquer possibilidade de aprofundar o debate. “É claro que quando essa matéria sair eu e Misha seremos tratados como antissemitas. Ela vai virar, eu já sou”, ironiza Michel. Confira a entrevista:
Blog: Viu-se uma reação muito forte da direita e extrema-direita à comparação que Lula fez entre Netanyahu e o Holocausto. Como esse campo político se aproximou de Israel?
Michel Gherman: Eu acho que há quatro elementos fundamentais que reorganizam a extrema-direita no Brasil: É importante notar que judeu e Israel não têm diferença para a extrema-direita. Acho que isso é muito importante. Quando eles falam sobre judeu, estão falando sobre Israel e vice-versa. O primeiro ponto é que os judeus são vistos como brancos, profundamente brancos e ocidentais. O segundo é que os judeus são vistos como violentos, radicalmente armados, o que tem a ver com ocupação e a expansão de assentamentos. O judeu é ultracapitalista, ou seja, Israel é um país em que o estado não intervém em economia, as pessoas são livres, são empreendedoras. E o quarto ponto é que Israel é percebido como um país cristão. Eles falam sobre civilização judaico-cristã. São essas as referências que mobilizam a nova extrema-direita no Brasil e no mundo inteiro.
Blog: É uma simplificação com muitas contradições, não?
Michel: Pior, são referências historicamente antissemitas. O judeu é rico, o judeu é armado, o judeu é violento, o judeu é capitalista, dono do mundo, etc. isso é típico do antissemitismo lá no final do pós-guerra. Você tem uma mudança na perspectiva. Incorpora o Holocausto como sacrifício e coloca essa ideia de judeu negativa como positiva. A extrema direita faz esse movimento, que a gente chama de construção do judeu imaginário
Blog: E o que é esse judeu imaginário?
Misha Klein: Não tem nada a ver com o judeu. É a apropriação de símbolos de Israel e do judaísmo para outras propostas. São elementos étnicos e religiosos usados politicamente. A extrema-direita acha que essa aproximação a Israel é uma declaração de amor aos judeus, mas não é. Porque está pouca interessada no Estado Israel de hoje, complicado, diverso, com ideias bem diferenciadas, tem pouco interesse em judeus atuais. O que interessa é como se usa judaísmo como um cristianismo de raiz. Perceba que eles nunca falam em democracia. Claro. Antigamente se falava de Israel como o único país democrático do Oriente Médio. Não se fala mais. Eles estão interessados nesse lado autocrático.
Michel: Esse judeu imaginário também existe muito fortemente em Israel. Ou seja, a noção que a direita e a extrema direita israelense tem hoje dos judeus progressistas e de esquerda é passada por esses quatro pontos também. E há poderoso antissemitismo em Israel contra os judeus progressistas. Há uma deputada enlouquecida em Israel, que os trata como aliados do Hamas. E como aliados de Hitler também. Entende? Hamas e Hitler são vistos como a mesma coisa.
Misha: A ex-primeira-dama foi votar na eleição presidencial com uma camiseta com a bandeira de Israel. Os filhos do presidente na época vestiam camisetas com os emblemas do IDF (Israel Defense Force, o exército de Israel) e o Mossad (agência secreta do estado de Israel),. Isso é loucura total. Se fossem judeus seriam acusados ser traidores. Mas eles vestem uma Israel imaginária. É um processo simbólico de manipulação de significados, que você pode ligar com o trabalho do historiador Benedict Anderson, que escreveu Comunidades Imaginadas. Ele traça a criação do conceito da nação.
Blog: A definição de movimento sionista virou uma batalha entre o bem e o mal. Porque a palavra causa tanto ruído?
Misha: A gente não usa a palavra em nossos trabalhos propositalmente. Por que incita reações, fecha a capacidade das pessoas ouvirem. Então a própria palavra virou um símbolo que divide, que para várias pessoas representa coisas diferentes. E o que temos para falar nada tem a ver com o sionismo em si.
Quando você acha que judeu ou sionismo têm um significado claro, você está perdido e não está acompanhando absolutamente nada. A partir do momento que você enxerga o judeu como uma ideia, com usos diferentes dependendo da posição ideológica, você começa a entender porque essa pequena comunidade, numericamente insignificante, (são cerca de 120 mil no Brasil) tem essa presença simbólica tão grande.
Blog: Vocês colocam a noite de três de abril de 2017 como um marco na relação entre Israel e a extrema-direita no Brasil. Nesse dia Bolsonaro fez um discurso racista e contra os indígenas. Expliquem por favor
Michel: Quando a gente está na porta da hebraica, e eu e Misha estávamos lá, a gente percebe que algo muito estranho estava acontecendo. Lá dentro você tem apoio a Bolsonaro. Fora, é a primeira manifestação que trata Bolsonaro como fascista. Quem está na porta da Hebraica está vestindo a camisa, bandeiras de Israel. E a fala é: judeu sionista não apoia fascista. E dentro do auditório? As pessoas estão com bandeiras de Israel. A gente começa a perceber que esses dois símbolos são tratados de maneira completamente diferente dentro da comunidade judaica.
Misha: Aquela noite foi um momento chave. Uma das primeiras coisas que aconteceu foi que a comunidade judaica formal, as organizações, chamaram o protesto contra Bolsonaro de pogrom, isto é, a perseguição e o ataque à comunidade judaica, como aconteceu na Rússia tzarista. O problema é: trataram os manifestantes como não-judeus. Nesse caso, o judaísmo não é uma questão religiosa, tem um objetivo político e ideológico. Se você não concorda conosco, você é uma não pessoa. Você não tem direito de falar. Você é não judeu. Você é tão perigoso quanto o exército que atacava a gente.
Blog: E a relação dos evangélicos com essa imaginário de Israel?
Michel: Primeiro eu acho que há um problema nisso, que é um certo racismo estrutural. Quando a gente fala dos evangélicos e justifica que essa loucura se relaciona com a camada da população com menos acesso, a maioria negros e periféricos. Olhamos os evangélicos como responsáveis pela degeneração política. Eu acho que os evangélicos são parte do jogo, mas não são o jogo inteiro. Mas há uma questão teológica e identitária, o dispensacionalismo, ou seja, a recuperação de Israel como uma referência do povo escolhido.
O que a gente se pergunta é quando é que essa questão teológica vira uma questão política. Acho que esse é o ponto. E ela só vira uma questão política com a instrumentalização de uma extrema direita não religiosa, ligada ao neoliberalismo, à branquitude. Ela se articula e traz a teologia do domínio, em que é bom se aproximar dos fortes para se transformar em forte também..
Blog: E as declarações do presidente Lula?
Michel: Eu acho que teve uma armadilha aí que o Lula caiu.
Misha: Falou bobagem porque distraiu completamente. Não era preciso falar aquilo. Falar de Holocausto é um botão que explode tudo.
Michel: A bola foi no peito do Netanyahu, né? Eu acho que no domingo a gente vai ter um problema.
O drama é que tem gente que está lendo o pós-colonialismo, a Sociologia Crítica ou o debate sobre negritude e está entrando na dança da extrema direita a partir de categorias que a extrema direita usa, por exemplo, como o sionismo. Eles estão traduzindo essa definição a partir das lógicas da extrema direita. O que é sionismo, a esquerda incorpora. A extrema direita define o que é judeu, a esquerda incorpora. Então, a extrema direita também está colonizando a esquerda. O que é trágico!
Blog: E a repercussão internacional?
Michel: O que está acontecendo hoje não é uma crise internacional, é uma crise entre a extrema direita israelense na figura de Netanyahu, que quer virar referência internacional da direita mundial, e Lula, que quer se transformar na referência internacional do progressismo.