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Zona de (des)conforto (Por Fábio Roberto Ferreira Barreto)

Até quando as mortes e o sofrimento de quem só almeja (sobre)viver vão manchar a humanidade?

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1 de 1 Imagem colorida pintura - Os Retirantes - Cândido Portinari - Metrópoles - Foto: Reprodução / Redes sociais

Meu filho de oito anos, Rafael, dormia entre nós (eu e minha companheira Daniela) quando tomei ciência pela TV do naufrágio no Canal da Mancha em setembro deste ano, entre dois dos países mais ricos (e colonialistas do planeta): 12 mortes – 06 menores, dos quais 03 eram crianças – outras 12 hospitalizações (duas em estado muito grave).

Rememoro esse episódio trágico enquanto – redigindo este artigo sobre o Dia Internacional do Imigrante, celebrado em 18 de dezembro – degusto um iogurte com geleia preparado por uma venezuelana. Professora no país vizinho, ela (não revelo nome porque, como ensina Machado de Assis, o que importa é a história) teve de migrar com sua família (marido comerciante e filhos) para o Brasil cerca de três anos atrás almejando sobreviver com o mínimo de dignidade.

A saborosa guloseima em nada tem a ver com os dissabores de quem, a despeito de ter ocupação profissional no país natal, relata que, mesmo tendo como custear a aquisição de itens básicos – água, inclusive –, nem sempre conseguia comprá-los por escassez de produtos indispensáveis à existência humana.

A riqueza do petróleo da Venezuela sempre foi, devido à cobiça dos EUA, a causa da pobreza de seu povo (estando no poder a direita, alinhada ao país da América do Norte, ou a esquerda, em desacordo com a potência mundial do Norte). A discussão é profunda, mas o sofrimento é inevitável para os irmãos e irmãs venezuelanos(as).

Entre uma colherada e outra (com pausa alongada para aproveitar ao máximo a delícia láctea), a indagação que me veio à cabeça foi “Para onde estamos indo?” “Para onde estamos indo? – eu pergunto às vezes, mas ninguém me responde” – que é a fala da filha para o pai, personagens protagonistas do livro Para onde vamos, que trata sobre os deslocamentos humanos.

Um autor colombiano e um ilustrador peruano apresentam o enredo de um pai e uma filha (propositadamente não nominados) que percorrem seus caminhos até um muro, inspirado, certamente, no Muro da Vergonha, entre os Estados Unidos e o México. Um coiote, animal sugestivo, aparece em diversas passagens, aludindo ao tráfico humano, personificado na figura desse bicho.

Lembrei-me desse livro, pois o selecionei, naquele mesmo dia, durante o horário de trabalho coletivo com docentes da minha escola para o Leituraço (atividade pedagógica que mobiliza a unidade escolar em prol da leitura literária), a pedido da excelente professora Carol (eternizada na função de Grupo de Estudos do CEU EMEF Cantos), que pedira a sugestão de uma obra leve e profunda para a ocasião supracitada.

Dias antes, inclusive, o programa dominical televisivo Fantástico, havia exibido uma matéria sobre o Deserto da Morte. Como Para onde vamos, a matéria dialogava diretamente com a temática veiculada pelo programa global, a que muitos educandos (bem como seus familiares) assistem; razão pela qual julguei mais oportuno ainda indicar a obra literária dos irmãos latino-americanos.

Ademais, Para onde vamos é uma narrativa muito bem engendrada nas imagens e nas palavras, tratando com sensibilidade a respeito de um tópico de tanta brutalidade, o que não só atendia às expectativas da solicitação de minha colega de trabalho, mas provocava o debate acerca de movimentos migratórios entre os educandos do Ciclo Interdisciplinar (Quinto ano especificamente).

O assunto é objeto de estudo relevante para a rede de ensino na qual leciono(amos). O Caderno da Cidade: Povos Migrantes, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação (SME-SP), é, diga-se de passagem, um material visitado e revistado pelos educadores que exercem o magistério nas escolas paulistanas (além de regentes de outras redes) e pelos materiais didáticos produzidos Brasil afora.

À medida que fui me inteirando sobre o naufrágio, pela mídia tradicional, sites jornalísticos independentes, publicações oficiais (ONU News, Ministério dos Direitos Humanos), fui respirando cada vez mais fundo e agradecendo a forças espirituais – e aos que lutaram no passado para as conquistas do presente – por meu filho poder exercer seus direitos no país em que nasceu.

Somente em 2024, são 40 mortes nessa travessia (contabilizando-se as dessa tragédia setembrina). Entre 2014 e 2021, segundo a ONU, foram mais de 200 somente entre Grã-Bretanha e o restante da Europa; 740 entre Europa, África e Ásia. A busca pelo direito de viver tem números impressionantes – a única coisa mensurável no caso das imigrações –, pois o sofrimento, a dor e a angústia não podem ser dimensionadas.

Relatório Mundial sobre Migração de 2024, publicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em maio deste ano, apresenta dados alarmantes: “281 milhões de migrantes no mundo”. A ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), em junho, estimou em 120 milhões o “número total de pessoas deslocadas à força” no ano de 2022. Talvez, nesta data simbólica de hoje, sejam divulgados outros estudos, mais ou menos impactantes, mas sempre preocupantes.

O Rafa, em decorrência do acesso de tosse, havia vomitado. E muito naquela noite! As mudanças climáticas – sobretudo, as oscilações dos dias anteriores à data em questão, a baixa umidade – decerto, afetaram meu filho. Mas ele estava em casa (simples, é verdade), alimentado e medicado. Se precisasse (e não foi, graças a Deus), poderíamos contar com serviços médicos (não são os melhores, mas temos o SUS).

No dia seguinte (como foi): a rotina de meu filho não foi interrompida: aula, brincadeiras, futsal, natação, três refeições, amor, carinho e segurança (daquele jeito em São Paulo, porém, sem os terrores do Sudão, da Síria, de Palestina-Israel ou da Ucrânia-Rússia, onde infâncias são assassinadas, bombardeadas de um modo muito mais violento do que por esta terra em que se exterminam jovens periféricos e pretos, para citar uma das barbaridades do país tropical mais famoso do mundo).

Embora todo refugiado seja um imigrante, nem todo imigrante é um refugiado. Refugiado – vale ressaltar a explicação da ACNUR – “é a pessoa que deixou tudo para trás para escapar de conflitos armados ou perseguições”, ao passo que migrante “escolhe se deslocar […] para melhorar sua vida” (inclusive, aqueles que se deslocam internamente, como os avós e bisavós de Rafael ou dos familiares dos educandos da escola onde leciono – o segundo bairro distrital mais nordestino do país).

É preciso educar para um mundo melhor hoje. A literatura – e todas as outras artes –  deve desempenhar um papel crucial na mudança de posturas e de paradigmas no planeta. A celebração do Dia Internacional do Imigrante não pode ser mais uma agenda no calendário, mas, sim, permitir reflexões e mudanças necessárias à transformação do mundo em um lugar melhor (no território de origem, sobretudo, mas, também, no de destino a quem quiser ou necessitar).

A arte denuncia como fez o clássico Picasso, em Guernica, bem como Portinari, em Retirantes. A arte propõe, como a produção de um Anônimo(a), da expressão mais rica da contemporaneidade, Aline Bispo, de qual se pode depreender a epistemologia feminina-negra-africana precisa urgentemente destronar o patriarcado, de ordem masculina-branca-europeia.

O mundo pertence a todos, não apenas a quem pode pagar para sair do planeta: Não olhe para cima! Nem para os umbigos! Olhe para o lado! Olhe para as crianças! Olhe para as diferenças! Olhe para os indígenas! Olhe para as mulheres! Olhe para frente! Olhe! Olhe! Olhe!

Fábio Roberto Ferreira Barreto é mestre em literatura pela USP e professor da rede municipal de ensino. Artigo transcrito do Le Monde Diplomatique-Brasil (https://diplomatique.org.br/)

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