Violência e corrupção: aliadas de político miliciano (Pedro Abramovay)
A dicotomia entre as duas é perversa porque autoriza a violência
atualizado
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A chacina de Jacarezinho é a maior de todas na cidade do Rio de Janeiro. Mas, infelizmente, não surpreende. Choca, mas não surpreende. O quarto da menina de nove anos sendo limpo porque um policial executou uma pessoa ali não parece ser uma imagem forte o suficiente para reverter cenas que são cotidianas.
E como é possível que a escala, absolutamente única, da violência da polícia fluminense se mantenha de forma tão persistente? Uma das hipóteses seria dizer que a sociedade está assustada com a criminalidade e aceita conviver com uma polícia tão violenta como um custo para que o problema seja resolvido.
Mas o problema está sendo resolvido? A letalidade policial no Rio de Janeiro nunca conseguiu baixar a criminalidade. Ao contrário, a violência da polícia tem sido um elemento de piora da segurança pública no Estado. E os apoiadores dessa violência como solução são —conscientemente ou não— cúmplices da crise de segurança no Rio.
O filme Tropa de Elite prestou um grande desserviço ao debate sobre polícia no Brasil. Não vou discutir se essa foi ou não a intenção do seu diretor. Mas uma leitura corrente do filme, um dos mais vistos da história do cinema nacional, foi a de que duas polícias distintas eram apresentadas. Uma corrupta e outra violenta. Uma má e outra boa. Como quase tudo que é tão maniqueísta, tratava-se de ficção. Há apenas uma polícia. Com corrupção, violência, com gente séria e gente incompetente.
A dicotomia entre corrupção e violência é particularmente perversa. E particularmente enganosa. É perversa porque autoriza a violência, justifica a violência e coloca quem está contra a violência como aliado da corrupção. E é enganosa porque nada mais próximo da corrupção policial do que a violência policial. São fenômenos que se alimentam.
A corrupção necessita da violência. A corrupção policial —e aí falando especificamente do Rio de Janeiro— se constrói em uma rede de extorsão e cumplicidade que setores da polícia montam com a criminalidade. A polícia é violenta em algumas comunidades e isso permite que bandas podres da polícia possam extorquir, participar da venda de armas, ameaçar.
A violência autorizada é, na verdade, um cheque em branco para que a polícia aja fora da lei. Para que as corregedorias não investiguem a relação entre o crime organizado e a polícia. Afinal, investigar a polícia é romper o pacto de impunidade que os agentes da lei criam. Esse pacto se utiliza de um discurso de guerra no qual as leis, a Constituição e seus defensores seriam apenas entraves para que a polícia possa cumprir o papel que a sociedade quer que ela exerça nessa guerra. E é a partir desse pacto de impunidade, de uma certeza de que a polícia não será investigada, que floresce a polícia corrupta. A polícia que se alia à milícia. A polícia que é instrumento de setores políticos que vendem violência e embolsam corrupção.
O segundo filme do Tropa de Elite tenta desenhar um pouco essa relação. O inimigo agora é outro? Mas era tarde demais. A imagem da polícia violenta como honesta era poderosa demais. E útil demais para a máquina política criminosa. É o desenho perfeito. A população tem medo. O medo não pede uma solução de políticas públicas a longo prazo. O medo pede respostas fortes, imediatas. A violência é essa resposta. E a violência policial tem o duplo condão de abrir novos mercados para as bandas criminosas e milicianas dentro do Estado, escolhendo qual facção controlará determinado território, recebendo seu quinhão —via corrupção— no lucro dos mercados ilegais do Rio de Janeiro e, também, de criar o discurso político que entrega sangue para receber votos.
Os políticos que defendem os milicianos, que defendem a violência policial como política, constroem sua base política explorando o medo da população, usando o espetáculo da violência como propaganda política e garantem a impunidade para os setores da polícia que se infiltram, controlam e se aproveitam do domínio de território exercido pelo crime.
Para quem se interessa por essa discussão, é urgente ler A República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. Neste livro fica cristalina essa relação tão forte entre o discurso de apoio à violência policial, o crescimento da polícia corrupta e o grupo político que floresce do poder criminoso e lhe garante impunidade.
É esse ciclo vicioso no qual a violência e a corrupção se alimentam por meio da política que permite compreender como algo que vem dando errado há tanto tempo continua sendo levantado como bandeira para a segurança pública. Há interesses poderosos demais que sobrevivem politicamente desse ciclo.
Mas claro que não é só isso. A relação entre corrupção e violência, abraçadas pelo pacto da impunidade, só pode existir em uma sociedade que aceita a violência contra determinados grupos e em determinadas regiões. O racismo tão forte da nossa sociedade funciona como a grande benção a esse sistema corrupto. As vidas negras nas favelas são descartáveis. Todos são suspeitos. O Estado de Direito não deve existir para negros em favelas. O racismo é tão forte que é possível construir um discurso falso de que a violência traz segurança (mesmo com o fracasso tão retumbante do modelo) e gerar um pacto para proteger milicianos corruptos, assassinos, desde que essa violência recaia exclusivamente sobre negros moradores de favela.
A construção de uma política de segurança efetiva e para todos no Estado do Rio de Janeiro passa, em primeiro lugar, por quebrar esse ciclo vicioso de corrupção, violência, política e racismo. Para isso é necessário ser firme na defesa de um sistema de combate às ilegalidades cometidas pela polícia, no fortalecimento de uma polícia cumpridora da lei e intolerante com abusos de violência e de corrupção. É necessário que se desmascare a política que se constrói a partir da lógica miliciana de valorizar a violência para lucrar a corrupção. E é necessário o enfrentamento cotidiano e incansável ao racismo que é o verdadeiro óleo dessa engrenagem violenta e corrupta.
Pedro Abramovay é diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundations e advogado. Artigo transcrito do jornal El País; https://brasil.elpais.com/