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Vale a pena? (Por Luísa Semedo)

Enquanto a resposta definitiva não chega, podemo-nos agarrar aos princípios e compromissos que estabelecemos com nossa consciência

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Ali Jadallah/Anadolu via Getty Images
Cerimônia fúnebre enterro de uma menina de 8 meses chamada Jud Karim, que morreu no ataque no Campo de Refugiados de Nuseirat em Deir Al Balah, Gaza, guerra palestina israel
1 de 1 Cerimônia fúnebre enterro de uma menina de 8 meses chamada Jud Karim, que morreu no ataque no Campo de Refugiados de Nuseirat em Deir Al Balah, Gaza, guerra palestina israel - Foto: Ali Jadallah/Anadolu via Getty Images

Em 2021, participei num debate com os filósofos André Barata, Yves Michaud e Peter Trawny intitulado “Como nos Vamos Entender com o Mundo”, e na altura, questionei: para quê? Qual é o objetivo de se entender com o mundo? O mundo vale a pena? Nós valemos a pena? Quando oiço as notícias e percorro o ruído incessante das redes sociais, ao ver a facilidade com que se transita de questões de vida ou de morte para a indignação beata com o vestido transparente de uma artista, continuo a ter sérias dúvidas sobre se tudo isto vale a pena.

Quando olho para Gaza, Líbano, Sudão, Haiti, Ucrânia, Afeganistão ou o Mediterrâneo, para o sofrimento das populações civis, reféns de jogos de poder, vítimas de conceções predadoras, capitalistas, supremacistas, antropocêntricas, patriarcais, do mundo e de vidas, as dúvidas persistem. O cinismo com que se joga com existências humanas, a indiferença de quem poderia fazer a diferença, mas escolhe a passividade ou a cumplicidade, pergunto: vale a pena entendermo-nos com o mundo? Que mundo?

Quando sinto a emotividade seletiva de tantas pessoas, que choram e se indignam consoante a cor da pele, a origem ou a religião de crianças massacradas, que, num instante, passam de vítimas sagradas a meros danos colaterais, tenho dúvidas. Quando observo pessoas que protestam em Berlim contra um genocídio, em Londres pela preservação do planeta ou em Lisboa contra o fascismo a serem violentadas, algemadas, criminalizadas, questiono-me: vale a pena?

Enquanto isso, assisto ao desfile de partidos racistas como o Chega, que, nas ruas de Lisboa, de mãos dadas com grupos neonazis, promovem impunemente mensagens criminosas de ódio racista, xenófobo e islamofóbico, sem alarme ou consequência. Partidos que estigmatizam e aterrorizam populações portuguesas e imigrantes, reforçando as ideias e os partidos que no estrangeiro também podem ser nocivos para os emigrantes portugueses. E pergunto: vale a pena?

Quando vejo o aumento de leis e de perseguição às pessoas LGBTI+ em países como os EUA, Itália, Bulgária, Geórgia, Rússia, passando pelo Uganda ou a Costa do Marfim, tenho dúvidas. Quando penso que até uma mulher sedada pelo marido, violada por dezenas de homens, com provas filmadas, pode ainda ser acusada, como se fosse a criminosa, sentada no banco dos réus. Quando a direita e a extrema-direita praticam o feminacionalismo, instrumentalizando a causa feminista para fins racistas, xenófobos ou islamofóbicos, pergunto: vale a pena?

Tenho e continuarei a ter dúvidas, mas quando, esta semana, a L. e o T., numa aula de Filosofia, me disseram, com aquelas carinhas de adolescentes, onde ainda se vislumbra as crianças que foram, que “não acreditam” no mundo, que “é tudo corrupto”, que “a democracia não existe”, que “nada vale a pena”, senti pânico, acompanhado por um profundo sentido de responsabilidade e falha. Como é que vou poder dizer a jovens que nada disto vale a pena? Não posso. E, ao mesmo tempo, como transmitir um entusiasmo incondicional que não possuo?

Nesse momento vieram em meu socorro vozes como as do Amílcar Cabral, da Maria W. Stewart, da Marsha P. Johnson ou do Simon Nkoli, que não se deixaram levar pelo desespero, não tendo esse privilégio, que lutaram, por vezes sacrificando a própria vida para resultados que nem chegaram a ver. Pessoas que nos deixaram em herança progressos que devemos honrar. Enquanto a resposta definitiva não chega (se é que chegará um dia), podemo-nos agarrar aos princípios e compromissos que estabelecemos com a nossa consciência, mantendo um diálogo constante com o fluxo das existências reais. Podemos ouvir a Maya Angelou quando, na Carta à Minha Filha, dizia: “Podes não controlar tudo o que te acontece, mas podes decidir não te deixares reduzir por isso”, ao que eu adiciono “não ser reduzida a isso”. “Tenta ser um arco-íris na nuvem de alguém”, prossegue Angelou. Podemos não resolver todos os males do mundo de uma vez, mas devemos ir tentando. À pergunta “vale a pena?”, eu devia ter levado mais a sério as palavras da minha própria mãe, quando me dizia: “Vai-se andando, filha!…”

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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