Unir meio ambiente e desenvolvimento (por Marcos Magalhães)
Expoentes do agronegócio celebraram a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto que limita o reconhecimento de terras indígenas
atualizado
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Enquanto o Senado se prepara para votar sob flechas cruzadas propostas controversas como o Marco Temporal para demarcação de terras indígenas, é sempre bom lembrar que a política já foi capaz de unir no mesmo futuro o desenvolvimento e o meio ambiente.
Foi possível durante a Assembleia Nacional Constituinte, que concluiu seus trabalhos em 1988 com a adoção de um texto onde se buscava harmonia entre o crescimento econômico e a preservação da natureza.
E pode ser possível novamente, se representantes do Executivo e do Legislativo conseguirem identificar acima de suas muitas divergências uma visão menos imediata sobre o mundo atual.
Isso vale para terras indígenas, sim, mas vale também para o tipo de energia que pretendemos produzir e o tipo de agricultura que vamos estimular. Queremos extrair petróleo da foz do Amazonas? Exportaremos carne produzida em áreas desmatadas?
Até aqui, esses temas têm despertado mais paixões do que reflexões. E nem sempre as paixões correspondem às nossas fendas partidárias. A possibilidade de se encontrarem grandes jazidas de hidrocarbonetos junto à costa do Amapá deixou aliados em lados opostos.
Mas é a radicalização que cobra o preço mais salgado. O sabor da derrota eleitoral de outubro parece ter levado muitos empresários do agronegócio – e seus representantes no Legislativo – a se colocar frontalmente em oposição a um governo onde só identificam simpatias aos sem-terra.
Esses expoentes do agronegócio celebraram a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto que limita o reconhecimento de terras indígenas às que já vinham sendo ocupadas por povos tradicionais desde a promulgação da Constituição.
O relator do projeto na Câmara, deputado Arthur Maia (União-BA), descreveu o cenário da aprovação como o de uma vitória sobre oponentes ideológicos.
“Querem implantar o socialismo no Brasil”, disse Maia, que tem no currículo curso de Gestão Estratégica de Negócios na Warton School, da Universidade de Pensilvânia. “E um dos instrumentos é o de transformar áreas em reservas indígenas”.
Será? O deputado julga defender a segurança jurídica ao estabelecer um limite no tempo à decisão dos constituintes. Mas os próprios constituintes não se preocuparam em fixar datas.
Enquanto o Senado reduz a velocidade de tramitação da proposta, o Supremo se prepara para a possibilidade de precisar tomar uma decisão.
Pode nascer naquele Plenário uma aparente solução de compromisso, que resguarde a boa-fé de quem tenha adquirido terras passíveis de demarcação futura.
A solução pode vir a reduzir a insegurança jurídica. Porém, manterá o tema na zona de litígio da política. Política que já engoliu, durante tramitação de medida provisória de reorganização do governo, muitas das atribuições dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
Se tudo isso ainda parece ecoar as paixões eleitorais, talvez seja o momento de se repensar a própria política. Em vez de contabilizar liberações de emendas e indicações para ministérios, por que não se propor uma discussão em alto e bom som sobre temas sensíveis?
Não será fácil convencer o relator do projeto na Câmara de que a revolução socialista não vai começar nas terras indígenas. É possível, no entanto, estabelecer um campo aberto ao debate. Como foi no próprio tempo da Constituinte, quando centenas de índios e de fazendeiros frequentaram corredores do Congresso Nacional.
A iniciativa, nesse e em outros casos de interesse do meio ambiente, poderia ser do governo. Ou de parlamentares da situação e da oposição. Ou ainda de representantes da sociedade civil, em busca de soluções que passem além das trocas de favores da Praça dos Três Poderes.
Recentemente, por exemplo, representantes do Centro Soberania e Clima defenderam a realização de um debate científico e isento sobre a intenção da Petrobras de explorar petróleo junto à costa do Amapá.
“Queremos ajudar a chegar a uma decisão racional, que não seja ideologizada nem por um lado, nem por outro”, disse em entrevista ao jornal Valor Econômico o presidente da organização, Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa.
“Há que se encontrar uma saída que atenda aos interesses do Estado brasileiro, mas não comprometa o bioma”, sugeriu.
O petróleo, assim como as questões das terras e dos índios, ainda desperta muitas paixões. Tudo isso enquanto o mundo enfrenta inédito desafio climático e caminha para uma necessária descarbonização.
No campo da energia, em virtude de antiga prioridade às usinas hidrelétricas e de recente ênfase em fontes limpas como eólica e solar, o Brasil tem conseguido se apresentar ao mundo como um país onde 83% de sua eletricidade é renovável – contra a média de 28% no mundo.
Muitos outros países têm feito avanços impressionantes. Um deles, em particular, pode ser lembrado aqui para se renovar o argumento em favor da boa e velha política. Uma política capaz de aparar arestas, desenhar cenários e buscar consensos possíveis.
Trata-se do pequeno Uruguai, hoje governado pela centro-direita. O país se prepara para receber investimentos de US$ 4 bilhões na produção de gasolina sintética e de hidrogênio, ambos considerados combustíveis inovadores no processo de descarbonização.
Antes disso, porém, o país investiu em sucessivos governos, de esquerda e de direita, no estabelecimento de um parque de geração eólico e solar que abriu caminho ao novo passo. Nos últimos quatro anos, em média, a produção de energia elétrica foi 97% renovável.
Ao anunciar o investimento, há poucos dias, o ministro de Indústria, Energia e Mineração, Omar Paganini, levou menos de trinta segundos para garantir à política boa parte do crédito pelo processo de renovação do país.
“Temos uma matriz de produção de energia elétrica descarbonizada, somos dos muito poucos países no mundo que a tem”, observou Paganini. “Aí temos polêmicas sobre como se fez isso, mas no fundo houve um acordo multipartidário em que o Uruguai decidiu ir por esse caminho”.
O Brasil, que pode vir a ser um dos maiores produtores de hidrogênio e um dos grandes expoentes da economia verde no mundo, também já soube fazer da política um caminho para a definição de seu futuro. Assim mostra a própria Constituinte. Talvez seja o momento de tentar mais uma vez.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.