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Um farol de civilidade na América do Sul (por Marcos Magalhães)

Esse sentimento de respeito ao outro ajuda a explicar o cenário pacífico da celebração. Nas ruas estavam famílias inteiras

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Imagem colorida de Yamandú Orsi, candidato à Presidência do Uruguai
1 de 1 Imagem colorida de Yamandú Orsi, candidato à Presidência do Uruguai - Foto: Reprodução/X

Passava pouco das oito e meia da noite de domingo quando se intensificaram os ruídos das buzinas dos carros ao longo das ramblas de Montevidéu, as largas avenidas à beira do Rio da Prata. Era o início da intensa e pacífica celebração pela eleição de Yamandú Orsi para presidente do Uruguai nos próximos cinco anos.

Centenas de carros percorriam a orla, com bandeiras uruguaias e as tricolores da Frente Ampla, um conjunto de partidos de esquerda e centro-esquerda que comandou o país de 2005 a 2020 e agora volta ao poder, depois de cinco anos de mandato do presidente de centro-direita Luis Lacalle Pou.

Para quem se acostumou ao vale-tudo da política brasileira, depois da posse de Jair Bolsonaro, em 2019, as horas seguintes foram de aprendizado sobre os hábitos políticos de um pequeno país que projeta civilidade sobre a América do Sul.

Enquanto os simpatizantes da Frente Ampla se dirigiam ao centro antigo da cidade, para participar da festa, o primeiro a falar foi o candidato do Partido Nacional, Álvaro Delgado. “Uma coisa é perder as eleições”, disse ele, logo após cumprimentar o vencedor. “Outra coisa é ser derrotado”.

O resultado foi muito próximo. Orsi ganhou com 49,84% dos votos. Delgado obteve 45,87% dos votos. O Congresso também estará dividido. O presidente eleito terá maioria no Senado, mas precisará negociar os projetos mais importantes na Câmara de Deputados.

“Serei o presidente que várias vezes vai convocar o diálogo nacional para encontrar as melhores soluções, escutando muito bem o que dizem os demais”, prometeu Orsi.

No início da celebração, já sob a intensa chuva que se desenhava com raios no horizonte, o presidente eleito encontrou palavras para saudar os opositores. “Eles também são construtores dessa democracia”, recordou, “pois esse país é um exemplo de acumulação positiva”.

Esse sentimento de respeito ao outro ajuda a explicar o cenário pacífico da celebração. Não estavam nas ruas apenas jovens homens tomados pela paixão política. Nas ruas estavam famílias inteiras. Mães e pais levando seus carrinhos de bebês, pessoas idosas cantando, casais homoafetivos de mãos dadas.

Tudo isso apenas um ano depois da eleição do novo presidente da Argentina, o radical de direita Javier Milei, que anunciou, neste mesmo fim de semana, seu rompimento com a vice-presidente Victoria Villaruel, a quem acusou de estar “próxima ao círculo vermelho”, onde vê seus adversários à esquerda.

Muito afinado com Bolsonaro, Milei também vem articulando aproximação com o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, em quem poucos analistas conseguem enxergar sinais de moderação política ou pessoal.

Por isso, a eleição de Orsi pode ser vista como boa notícia para o Brasil e para a América do Sul.

A fama que tem de “bom conversador” pode ajudar a tranquilizar uma região onde os dois principais países poucas vezes estiveram tão distantes. Basta lembrar a foto de Milei com o presidente Luis Inácio Lula da Silva no encontro do G-20, no Rio de Janeiro. Nada de sorrisos. Uma foto gelada.

As relações internas no Mercosul podem ficar mais equilibradas. Após o G-20, o presidente da França, Emmanuel Macron, foi a Buenos Aires e divulgou nas redes sociais foto ao lado de Milei.

Os dois aproveitaram para criticar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul, que estaria em fase final de negociação.

Em sentido inverso, uma das prioridades do próximo governo uruguaio, segundo plano divulgado pela Frente Ampla, seria a de “fortalecer e expandir o Mercosul como primeiro bloco de integração regional nas áreas política, cultural, econômica e comercial”.

De um lado, isso se contrapõe a Milei, que diz não estar satisfeito com o Mercosul. De outro, pode indicar que o Uruguai não insistirá em um acordo comercial solo com a China, mas dará prioridade a uma negociação entre o bloco e o país asiático.

O programa da Frente Ampla inclui apostas no futuro. Pretende, por exemplo, adotar uma política de telecomunicações que ajude a consolidar o Uruguai, por meio da empresa estatal Antel, como “centro regional de excelência na provisão de serviços como internet, inteligência artificial, 5G e cibersegurança.

Outros acenos ao futuro são os planos de trocar pelo menos metade da frota de coletivos atuais por novos ônibus elétricos, em Montevidéu. E, quem sabe, cuidar de um projeto de construção de transporte subterrâneo no centro da cidade.

Mas há também questões mais polêmicas e urgentes. Como lidar com 50 grupos de narcotráfico que aumentam os índices de violência no país. Ou debater como reformar a Seguridade Social e estabelecer aos 60 anos a idade de aposentadoria.

Para tudo isso será necessária muita negociação. Algo que, ao menos aparentemente, os dois principais grupos políticos do país estariam dispostos a enfrentar. Até porque o Uruguai está praticamente dividido em duas partes quase iguais. A poucos dias das eleições, pouca gente se arriscava a prever resultados.

Professor de História e ex-prefeito de Canelones, Orsi é visto como hábil negociador. Pode haver herdado parte dessa qualidade do ex-presidente Pepe Mujica, que, aos 89 anos, bastante doente, mantém papel ativo na política.

Antes conhecido por seu passado na guerrilha, Mujica fez um governo moderado de esquerda e manteve boas relações com vários políticos de centro. Há um ano, recebeu das Nações Unidas reconhecimento por seu apoio ao processo de paz na Colômbia.

No domingo, logo cedo, o ex-presidente aparecia na televisão ao ir votar e defender a costura de novos acordos no Uruguai.

A cena era vista por vários turistas americanos em um hotel de Montevidéu. Um deles, mais íntimo do país, disse: “Mujica é um dos políticos mais famosos do mundo”. “Nunca ouvi falar dele”, respondeu outro americano, com sorriso de desdém. “É famoso por que?”

As reproduções de fotos do ex-presidente em milhares de bandeiras exibidas na celebração da noite de domingo, pelas ramblas de Montevidéu, talvez tenham lhe indicado a extensão do legado político do ex-presidente. E o desafio que seu escolhido herdeiro tem agora pela frente.

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