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Ultraje, acinte, escárnio (por Mary Zaidan)

Bolsonaro escancara sua política jurássica, ornada com dinheiro a mais para milicos, férias de luxo e churrasco milionário

atualizado

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Alan Santos/PR
Lira, Bolsonaro e Collor
1 de 1 Lira, Bolsonaro e Collor - Foto: Alan Santos/PR

No final deste mês, o presidente e seu vice, vários ministros e auxiliares do primeiro escalão serão aquinhoados com ganhos salariais de até 69%, rompendo, definitivamente, o teto constitucional de R$ 39,2 mil, remuneração dos ministros do Supremo. A excrescência, que amplia regalias para a elite da elite do funcionalismo federal, foi definida em portaria do Ministério da Economia no momento em que o titular Paulo Guedes roga por uma reforma administrativa que diz ser necessária para acabar com privilégios, e mais uma vez prova-se que é de mentirinha.

Ironicamente publicada em 30 de abril, véspera do Dia do Trabalho, a portaria deve custar, neste ano, perto de R$ 200 milhões ao Tesouro. Isso se outras categorias não exigirem a aplicação do mesmo critério, que, para fugir do teto, separa as remunerações, permitindo somar os ganhos do cargo ocupado e o da aposentadoria. Na prática, isso dobra o limite constitucional para R$ 78,4 mil. Um acinte.

Aprofunda-se assim a oficialização da desigualdade em um país no qual trabalhadores públicos têm segurança de emprego e remuneração boa parte das vezes maior do que os demais mortais, além de aposentadoria diferenciada, próxima da integralidade. No caso dos militares, isso beira ao escândalo, com regras e vantagens muito acima dos outros servidores, mesmo depois da reforma previdenciária de 2019.

Embora o Ministério da Economia argumente que a portaria beneficia médicos e outras funções essenciais, sem especificar quem e onde, o arrombamento do teto é um mimo adicional – e dos mais caros – às altas patentes militares que o presidente Bolsonaro necessita permanentemente adular.

Generais da reserva, como Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Braga Netto, passarão a receber mais de R$ 60 mil por mês. O astronauta Marcos Pontes, R$ 54,4 mil. Na linha de baixo da hierarquia, o capitão Bolsonaro terá aditamento de R$ 2,3 mil ao salário de presidente da República, passando a receber R$ 41,6 mil.

Ainda que possam ser legais, os aumentos ferem a ética, como reconheceu o vice Mourão. São impróprios no conteúdo, fora de época e lugar, além de absolutamente ofensivos diante da miséria cotidiana e que só se aprofunda. Um insulto a um país pandêmico e miserável, com mais de 27 milhões de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza, 15 milhões sem ter o que comer, dependentes de doações, para os quais a ação governamental é dispor, com quatro meses de atraso, de um auxílio emergencial de R$ 135 a R$ 375 – 25 a 75 dólares ao mês.

Para o tamanho da afronta, a repercussão do dim-dim a mais foi modestíssima. Uma ultraje ofuscado por escândalos maiores – orçamento secreto para repassar dinheiro a aliados, já apelidado de tratoraço ou bolsolão, omissão deliberada na compra de vacinas, gabinetes paralelos de saúde e de comunicação, mentiras deslavadas na CPI da pandemia.

Mas os privilégios pessoais, mesmo quando infinitamente inferiores a roubalheiras deslavadas, têm peso importante. Lula que o diga. O PT desviou milhões para beneficiá-lo, mas o tipo de indignação causada pelo triplex no Guarujá e pelos detalhes de novo rico na reforma do sítio de Atibaia tiveram preço altíssimo. Destruíram a semelhança que Lula construíra por anos entre ele e o brasileiro simples, o operário, o trabalhador. Somam-se aí outros gostos nobres do ex, os vinhos caríssimos, os lençóis de algodão egípicio de 800 fios, as festanças no Torto. Símbolos.

Bolsonaro, que adora ludibriar os seus com a figura de “homem do povo”, ainda não tinha exposto de forma tão evidente seu gosto pelas delícias do poder. O fez sem qualquer constrangimento, exibindo a picanha de R$ 1.799,00 o quilo servida no churrasco do Alvorada no Dia das Mães. E com o rótulo “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Um escárnio que escancara a farsa meramente publicitária do pão francês com leite condensado.

Para arrebanhar 57,7 milhões de votos, Bolsonaro vendeu a ilusão de que acabaria com a corrupção, eliminaria privilégios e enterraria a velha política. No exercício da Presidência é o mesmo oportunista que o eleitor não viu em 2018: acoberta corruptos em troca de apoio e amplia regalias aos fardados e aos fiéis. Posa faceiro ao lado de Collor de Mello, marajá que prometia caçar marajás. Tudo como dita a política jurássica, agora ornada com dinheiro a mais para milicos, férias de luxo e churrasco milionário.

Parece pouco, mas não é. A chave para desnudar impostores não raro está nos detalhes.

Mary Zaidan é jornalista

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