Trump e o risco de golpes de estado (Por Jorge Almeida Fernandes)
Notas sobre o mundo que não compreendemos
atualizado
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A campanha eleitoral de Donald Trump tornou-se tão grotesca que nos pode levar a subestimar o perigo que pende sobre a democracia americana, hoje muito mais ameaçada do que durante o seu primeiro mandato. Não gosto de teorias da conspiração nem de análises catastrofistas. Mas faço parte da “tribo dos muito preocupados”.
Escreveu há dias Daron Acemoglu, Nobel da Economia: “Trump ameaça a democracia americana em parte porque as instituições dos EUA não foram desenhadas para lidar com um autocrata populista que quer violar normas e até as leis.” Partilho desta opinião.
Encaremos os fatos. Mesmo no caso de uma vitória de Kamala Harris, os riscos são muito elevados. Ao contrário, o triunfo ou a derrota de Trump anuncia uma dupla ameaça de golpe de estado. Primeiro, se perder, tentará através de uma manobra política impedir a validação da eleição de Kamala. Segundo, caso ganhe, é provável o começo de um “golpe ao ralenti” para mudar a lógica das instituições e consolidar uma presidência autoritária.
Volto a concordar com Acemoglu. Trump constitui a maior ameaça à democracia, por várias razões. “A primeira é que aumentou a sua fúria, o que significa que está mais determinado do que nunca a concentrar o poder nas suas mãos e a utilizá-lo contra os inimigos (reais ou imaginários). Se ele voltar à Casa Branca, será não só mais perverso como também potencialmente mais determinado na sua agenda pessoal.”
Há uma única forma de as instituições ressurgirem e os EUA voltarem a ser governados como dantes, escreve Edward Luce, colunista do Financial Times em Washington: “Seria a vitória de Harris, com os democratas a conservarem o controlo do Senado e a retomarem a Câmara dos Representantes.” Seria a forma de anular o desafio de Trump, “mas é também o menos provável dos cenários”. Olhemos as sondagens: na Câmara, os dois partidos estão praticamente empatados; no Senado, é patente a superioridade dos republicanos.
Olhando para o passado recente, diríamos que um Senado republicano bloquearia toda a agenda política de Kamala. Mas, antes disso, há uma hipótese mais grave. Uma vitória escassa de Kamala, sem o controlo das duas câmaras, poderá ajudar Trump a bloquear a validação dos resultados presidenciais. Ele já fez o aviso prévio: “os radicais lunáticos de esquerda” vão voltar a “roubar a eleição”.
“O mais fácil caminho para as forças do MAGA anularem a vitória de Harris seria os republicanos assegurarem a maioria nas duas câmaras do Congresso nas eleições de novembro”, corrobora Jonathan Winer, alto funcionário do Departamento de Estado, no Washington Spectator. No caso de uma clara maioria no Congresso, os republicanos poderiam recusar a certificação dos resultados num certo número de estados ganhos por Kamala, o que daria uma vitória fácil a Trump. Atenção: não é um cenário de ficção científica.
Trump corre, no entanto, um risco: o de um razoável número de congressistas não o seguirem na estratégia golpista. Lembremo-nos do assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021, em que o golpe de Trump foi neutralizado pelo vice-presidente Mike Pence e um grande número de congressistas republicanos.
No caso de recuperar a presidência, nas urnas ou no Congresso, não é difícil imaginar a ameaça às instituições, com a provável passividade do Supremo Tribunal.
O pânico dos generais
Trump é “fascista até ao tutano”, diz o general Mark Milley, ex-chefe do Estado-Maior Interarmas (entre 2019-2023), no recente livro Perfil, de Bob Woodward e Robert Costa. “É a mais perigosa pessoa para este país.”
Por sua vez, Trump acusa Milley e disse que este deveria ser julgado num tribunal marcial, “por alta traição, crime outrora punido com a morte”. E Kamala seria também julgada num “tribunal marcial televisivo”.
O primeiro choque entre o Presidente e os militares teve a ver com as datas de retirada do Afeganistão. Mas o conflito de poderes ocorre durante os protestos “Black lives matter” contra a morte de cidadãos negros pela polícia. Trump quis, em vão, forçar a intervenção do exército.
Milley caiu numa armadilha do Presidente, aparecendo ao seu lado, em farda de combate, para ser fotografado numa ação de propaganda na Praça Lafayette de Washington, a seguir à repressão policial de manifestantes. Só depois, censurado por altas figuras militares, percebeu a armadilha.
O militar escreveu uma violenta carta de demissão, que não chegou a entregar por pressão de outros generais e de figuras republicanas como Robert Gates, antigo secretário da Defesa e ex-diretor da CIA. Os generais deveriam permanecer nos seus postos e resistir.
Milley escreveu então uma circular aos altos comandos militares e, dias depois, declarava numa cerimônia militar: “Nós não prestamos juramento a um rei ou uma rainha, um tirano ou um ditador, nem perante um candidato a ditador. Não juramos perante um indivíduo. Juramos perante a Constituição.”
Os episódios mais importantes do conflito entre Trump e os seus generais desenrolam-se nos últimos meses do mandato. Os militares recusam-se a ser utilizados como instrumento da política presidencial – a “politização das forças armadas”. E repetiram a sua oposição durante o golpe fracassado de 6 de janeiro, enfurecendo Trump.
Os generais suspeitavam que, após a derrota eleitoral, o Presidente procurava pretextos para impor a lei marcial e manter-se no poder. Um último susto é o rumor de que Trump pensaria atacar o Irã, como pretexto para declarar a lei marcial, o que significaria um golpe de estado. A então diretora da CIA, Gina Haspel, terá avisado Milley: “Estamos a caminho de um golpe de estado de direita.”
Toda a tensão desses dias foi longamente narrada em The New Yorker, pelos jornalistas Susan B. Glasser e Peter Baker. A execução do golpe falhado de 6 de janeiro deveu-se à incompetência e desorganização dos fanáticos do MAGA. Comenta Milley: “Conseguem imaginar o que um grupo de pessoas muito mais competentes teria conseguido fazer?”
(Transcrito do PÚBLICO)