Trump afia as facas. Kamala é o sistema (Por Alexandra Lucas Coelho)
E que está Israel a fazer na ONU, ainda? A bandeira das Nações Unidas caída na Palestina: retrato do mundo
atualizado
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1. Esta eleição americana será a mais dramática que já vivemos. Domingo passado vimos como Trump e a sua milícia afiam as facas contra a grande maioria de nós — mulheres, imigrantes, negros, muçulmanos, judeus —, com o apoio de metade dos Estados Unidos da América. Vimos aquela ilha de lixo ululante em pleno centro de Nova Iorque. No mesmo Madison Square Garden que em 1939 encheu com um comício nazi. O mesmo banal e letal barro humano, agora em direto para o planeta.
E no dia seguinte, com duas novas leis, o parlamento israelita fez o seu maior ataque às Nações Unidas, dentro da guerra geral que Israel trava na ONU desde a fundação. A primeira lei, aprovada por 92-10 votos, decreta o fim da UNRWA em todo o território israelita num prazo de 90 dias; a segunda, aprovada por 87-9, proíbe qualquer instituição do estado de colaborar com a UNRWA. Maiorias esmagadoras, que mostram (mais uma vez) como a degradação de Israel está longe de se resumir a Netanyahu. Mais de 20 deputados nem puseram os pés na votação. O mesmo pseudo-parlamento que persegue o jornalismo. E obriga os aliados internacionais a contorções diárias — ou ao silêncio — para manter o mito de que Israel é uma democracia.
2. A UNRWA foi, a partir de 1949, o que as Nações Unidas inventaram para lidar com a Catástrofe palestina, a Nakba, quando centenas de milhares tiveram de fugir das suas casas, depois da fundação de Israel. O único caso na História em que é criada uma agência de refugiados para um povo, supostamente provisória porque ia haver uma solução — mas nunca houve uma solução. Então, a UNRWA é o que o mundo inventou por ter abandonado um povo inteiro. Ao longo de todos estes anos deu comida, educação, teto e cuidados médicos a milhões a quem foram roubados os direitos humanos básicos, tantos nos países onde continuam refugiados palestinos (Jordânia, Líbano, Síria), como nos Territórios Ocupados (Jerusalém Oriental, Cisjordânia, Gaza). Uma tragédia por todas as razões, incluindo o fato de a máquina que garante a sobrevivência ser ela mesma, por isso, perpetuadora do mal. Ao longo de 22 anos fui testemunha, em todos os lugares onde a UNRWA atua, de como tantos palestinos dependem dela para viver. E ao mesmo tempo de como é terrível essa dependência, como viabiliza a ocupação. A ajuda da UNRWA desresponsabilizou Israel. Permitiu ao mundo fechar os olhos aos crimes da ocupação. E aos israelitas fechar ainda mais os olhos aos seus próprios crimes. Pois se alguém estava a manter os palestinos vivos o mundo podia seguir como se nada fosse. Visitas cristãs à Terra Santa. Paradas gay em Tel Aviv. Jovens bonitos na praia. Uma rave. Até que tudo isso foi pelos ares no 7 de outubro. Aí, pela primeira vez, muitos jovens no mundo viram o que era a Palestina do outro lado do muro. E viram o que era Israel, essa construção do Ocidente, quando tudo lhe é permitido. Quando o Ocidente se permite escolher as vidas que valem mais, começando pela sua, e a sua própria culpa.
A UNRWA é a má consciência do Ocidente. Foi muito útil a Israel, perito em dar de comer à máquina enquanto a vai destruindo. Mas com todas as críticas que possamos ter quanto à ONU, e aos aparelhos de ajuda que perpetuam os problemas, a UNRWA só existe porque o mundo nunca fez justiça aos palestinos. E com o holocausto em curso desde 7 de outubro, a maior obscenidade depois de todas as anteriores seria tirar aos palestinos a ajuda que têm. Não é simplesmente possível substituir a UNRWA agora, ou num futuro próximo. O que não impediu supostas democracias de cortarem apoios decisivos à UNRWA por em 30 mil funcionários, 10 ou 12 pessoas serem acusados por Israel de ligações ao Hamas. Uma percentagem ínfima, e milagrosa, tendo em conta as redes de estreita proximidade acentuadas pela ocupação, como sabe qualquer pessoa que conheça aqueles territórios. Uma investigação interna foi feita, 9 pessoas despedidas por poderem ter algum tipo de laços com o Hamas. Não bastou a Israel. Era preciso acabar de vez com ela. Estas duas leis fazem isso. Banir a UNRWA de Israel significa bani-la de Jerusalém Oriental, território que Israel anexou contra todas as resoluções internacionais, e onde milhares de famílias palestinas dependem da UNRWA. E a segunda lei, ao proibir qualquer colaboração israelita com a UNRWA, impede a chegada de ajuda a Gaza, porque as Forças de Defesa de Israel não vão poder coordenar isso com a UNRWA. Salários e despesas não poderão ser pagos com bancos israelitas. Milhões de palestinos deixarão de ter escola, comida, cuidados médicos.
Há muitas formas de matar. Por exemplo, o mais conhecido “jornalista” da TV israelita há dias vibrou ao ser convidado a carregar no botão para fazer explodir um edifício no Líbano. Outros carregam no botão estando no parlamento. Mandam uma agência das Nações Unidas pelos ares. Chamam-lhe terrorista. Proíbem o secretário-geral de entrar em Israel. Insultam-no, não lhe atendem as chamadas. Isto está a acontecer desde 7 de Outubro. Ao mesmo tempo que Israel continua sentado nas Nações Unidas. A mesma organização que espezinha. A fazer o quê, mesmo?
O que é que falta para as outras nações tratarem Israel como o estado pária que é? Para Israel, enfim, aprender o que é um limite? Ou a ideia é as Nações Unidas afundarem-se com Israel?
3. Antes de começar esta crônica fui (de novo) à procura da reação de Kamala Harris ao facto de a UNRWA ser banida. E (de novo) vi a cara consternada (na linha Blinken) do porta-voz do Departamento de Estado a dizer que os EUA estavam “deeply troubled” com a decisão de Israel. De tanto “deeply troubled”, os EUA estão já enterrados até às orelhas, o que não os impede de continuarem a mandar bombas. Quanto às declarações de Kamala, não achei nada. Está com certeza deeply troubled, mas em campanha. E como foi claro desde a convenção do Partido Democrata, Kamala em campanha não tem qualquer visão além do que vinha de Biden, e de antes, apesar de esta campanha pedir mais visão do que nunca. Na convenção, Kamala desprezou os não-alinhados que lhe pediram algo tão simples como uma voz palestina-americana no palco a falar por Gaza. Desprezou os apelos ao embargo de armas. Desprezou a quantidade de muçulmanos americanos, e de jovens eleitores americanos em geral, que pediam um gesto real pelo cessar-fogo, em vez de conversa para boi dormir. E parece não entender que isso lhe vai custar votos preciosos.
A seguir à convenção, um amigo que mora nos EUA contou-me uma conversa com amigos do filho. Jovens americanos de classe média, que vão votar pela primeira vez na terça-feira. Perguntou-lhes em quem votariam. Ouviu esta resposta: Gaza vai decidir o nosso voto.
4. Torço para que Trump, proto-ditador e criminoso já condenado, perca as eleições e a derrota não seja violenta. Penso nos milhões de pessoas que estão, e estarão, sob a ameaça das tropas trumpianas. E é por tudo isso, e não apesar disso, que lamento ainda mais o que Kamala não disse e não fez desde que Biden abdicou. O fato de Trump ser tão mau não torna melhor a incapacidade de Kamala. Claro que ela é melhor do que ele, será certamente muito melhor para as mulheres e muitos imigrantes na América. Mas ficou tão aquém do que se podia esperar dela num momento histórico. Kamala continua o sistema na versão mulher não-branca e jovial. Não deu o passo entre o passado e o futuro. A generalidade do Partido Democrata não parece ter dado. Só podemos esperar que o venham a dar, com muita gente a lutar por isso.
Entretanto, o retrato do mundo é aquela bandeira das Nações Unidas derrubada, junto com um edifício da UNRWA, durante mais uma operação do exército de Israel.
(Transcrito do PÚBLICO)