STF x Bolsonaro, presidente é acusado de mentir (por Joaquim Falcão )
Supremo resolveu enfrentar o presidente da República no seu próprio campo: as redes sociais
atualizado
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Quando, em 2002, a TV Justiça foi ao ar por iniciativa do ministro Marco Aurélio, o brasileiro pôde ver ao vivo uma sessão do Supremo. Tudo mudou. Ver os ministros, digamos, em carne viva, discutindo, produzindo a justiça. Tudo mudou.
Democratizou o acesso do Supremo a milhões de brasileiros, o que antes só era visto por poucos advogados das partes. Mostrou que a justiça não caía dos céus. Nem que os juízes eram deuses.
Levou-se a sério o princípio constitucional da transparência. O Supremo entrou na sala das nossas casas, sentou-se ao nosso lado e o diálogo foi iniciado.
Mudou mais. Mudou a linguagem dos ministros, tornando-a mais acessível. Mudou a importância dos argumentos. Mas também, como mostrou o professor Ivar Hartmann e outros pesquisadores, os votos ficaram mais longos. Os ministros à beira de se tornarem celebridades.
Anteontem vimos outro momento decisivo das relações entre Supremo e sociedade. Pela primeira vez, o Supremo, em vez de fazer uma nota formal, assinada pelo presidente do tribunal, escrita como se fosse um documento, fez um post. Como se fosse um usuário qualquer do Twitter.
Hoje, o post já é famoso: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não!”. Em resposta aos ataques com fake news do presidente Bolsonaro.
Este é um momento divisor de águas para o Supremo. Por vários motivos. A burocrática nota oficial de então não chegava a todos os brasileiros. Poucos compreendiam a linguagem. Era assinado pelo presidente. Uma manifestação institucional.
Agora, em vez de o Supremo influenciar as redes sociais, são as redes sociais que estão influenciando o Supremo. Inclusive em sua palavra e imagem. Ao vivo e a cores. Revestidos de design gráfico.
Mais ainda. O Supremo resolveu enfrentar o presidente da República no seu próprio campo: as redes sociais. Onde o presidente, e seus filhos têm expertise a nível mundial.
Tanto que em menos de vinte e quatro horas depois, o presidente Bolsonaro já respondeu. Reafirmou suas fake news. O Supremo teria cometido crime ao lhe proibir de agir na pandemia.
As redes sociais passaram a ser arena das tensões, conflitos e acordos dos três poderes. Isto é novo. Isto é inédito. A nível mundial. Um Supremo proativo. Não é mais o poder que apenas reage nos autos.
É outra tentativa pós-Marco Aurélio de se democratizar. De ser entendido sobretudo pelas classes mais populares. Em boa hora.
Pesquisa deste mês da IPSOS mostra que 69% de nossa população enxerga o Brasil como estando em declínio. Mostra que a nossa elite política e econômica, da qual integra também o Supremo, não se importa com trabalho duro aos olhos de 82% da população.
Mas afinal, um Supremo twittante perde ou ganha autoridade e influência na democracia? É bom ou ruim para o Estado democrático de direito?
Perde, por exemplo, o que o presidente José Sarney chamaria de liturgia do cargo. A liturgia do cargo tem sido indispensável em todos os lugares e em todas as épocas para o reconhecimento da autoridade de quem o exerce. O Supremo agora se iguala a qualquer usuário do twitter. O Supremo acusa Bolsonaro de fake news. Bolsonaro acusa o Supremo de crime. Afinal, quem é quem? A liturgia ajudava a diferenciar.
Vão mudar as doutrinas jurídico-políticas sobre o processo decisório judicial. O tweet não é assinado por ninguém. Quem é o responsável por ele? Quem representa a instituição no caso? O Supremo tem agora a iniciativa de falar? Mesmo que indiretamente sobre conflitos sob sua jurisdição? O que não é regulável.
O Supremo, de ritos formais, está ficando informal, indaga o professor Thomaz Pereira? Quem controla e quais os limites desta informalidade?
A autoridade agora é o igual? Tudo junto e misturado?
Joaquim Falcão é professor de Direito Constitucional e membro da Academia Brasileira de Letras. Artigo transcrito do jornal O Estado de S. Paulo