Sob o domínio do improviso (por Mary Zaidan)
Sem políticas públicas estruturadas, o Brasil só funciona em estado de emergência
atualizado
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Sem planejamento e políticas públicas estruturadas e contínuas para enfrentar desafios conhecidos, o país se move pelos ditames da urgência.
Todo mundo viu as portas dos quartéis se enchendo de radicais e ninguém nada fez para evitar o pior. Gastam-se fortunas para amenizar calamidades e pouquíssimo para preveni-las. Montam-se grupos de inteligência e ações emergenciais cujos resultados, mesmo quando espetaculares, dificilmente são postos em prática. Não raro, são mais dinheiro e energia perdidos.
Estudo técnico da Confederação Nacional dos Municípios, com dados computados até março deste ano, aponta que só com secas e chuvas o país amargou perdas de R$ 401,3 bilhões no período de 2013 a 2023. Na década, esses “desastres naturais” atingiram mais de 380 milhões de pessoas – quase o dobro da população brasileira, demonstrado a reincidência dos danos, boa parte deles preveníveis.
Na outra ponta, os investimentos do governo federal em prevenção caíram vertiginosamente de R$ 3,4 bilhões em 2013 para R$ 1,17 bilhão em 2022, sendo que apenas 38% dos recursos foram realmente pagos, ou seja, menos de R$ 600 milhões, segundo o site Contas Abertas. No início desse ano, só para socorrer o Litoral Norte de São Paulo, o governo despendeu R$ 120 milhões. Emergencialmente. No final do ano e no início do próximo, certamente, as calamidades vão se repetir.
A superlotação de presídios e as condições subumanas nas quais os detentos – por piores que sejam – são submetidos é de conhecimento geral há décadas. Assim como o poder de mando dos chefões do crime organizado sobre o sistema penitenciário. O vice-presidente da República Geraldo Alckmin sentiu isso na pele quando governava o estado de São Paulo e se viu enredado por rebeliões. Não há governador que desconheça a precariedade de suas cadeias e o caldeirão ao ponto de ebulição delas. No entanto, elas só chamam a atenção quando explodem. Vem a verba emergencial – R$ 100 milhões no caso do Rio Grande do Norte – e pronto. Até que outro estouro aconteça.
Nos Ianomâmis, o caso tem outras vertentes de gravidade. Suspeita-se de genocídio do governo anterior, estimulador do garimpo ilegal e nada afeito às comunidades indígenas. Ainda assim, o descaso com esses povos é histórico. As soluções pulam de emergência em emergência – e estamos enfrentando mais uma – sem que o país consiga desenhar políticas um pouco mais duradouras.
Até para tentar minimizar a miséria, o improviso impera. A proposta de auxílio emergencial do governo Bolsonaro durante a Covid-19 era de R$ 200. Acabou em R$ 600 por pressão do Congresso, valor estipulado também para o finado Auxílio Brasil. Lula recuperou o Bolsa Família, trazendo de volta as bem-vindas contrapartidas como a exigência de vacinação das crianças. Sabe-se lá a partir de qual conta ou parâmetro, os R$ 600 foram mantidos, com acréscimo de R$ 150 para filhos de zero a seis anos e de R$ 50 para filhos de 7 a 18 anos.
Que o Bolsa Família é necessário ninguém discute. A questão de fundo é outra: o benefício foi definido pela emergência eleitoral e não a partir de critérios técnicos que dêem embasamento à quantia paga. Está, portanto, sujeito aos humores do governo da vez.
De urgência em urgência o Brasil gasta muito e entrega pouquíssimo. Novas enchentes virão sem que as encostas que caem sobre casebres tenham sido contidas e esvaziadas, sem que habitações mais seguras e dignas tenham sido construídas. Novas rebeliões em presídios, novos horrores entre as comunidades indígenas, novos ataques mortais em escolas – emergencialmente socorridas com R$ 150 milhões e a criação de um grupo de trabalho interministerial.
Deve-se aplaudir a rápida ação do governo Lula diante de calamidades e urgências. Mas é inadmissível – e cruel – transformar emergência em política pública. O país não pode continuar a ser condenado às leis do improviso.
Mary Zaidan é jornalista