Sinéad O’Connor (por Miguel Esteves Cardoso)
Ela foi vítima da grande mentira do nosso tempo: a de nos confessarmos, mostrarmos sofrimento, pedir ajuda a quem está bem
atualizado
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Manda a beleza da obra de Sinéad O’Connor que se fale um bocadinho dela e do que ela fez e representou enquanto esteve viva neste mundo que continua a ser o mesmo de sempre.
Ela levou a sério a ideia de que queremos conhecer melhor os artistas atrás das obras. Mas é mentira. Nós gostamos é das obras. Neste caso, das músicas. Neste caso, das canções de Sinéad O’Connor. Em muitos casos, de uma única canção que ela cantou: Nothing Compares 2 U, uma das maiores interpretações do século XX.
Sinéad O’Connor mostrou-se. Mostrou-se a cada momento, como o ser humano que era. Mas ninguém queria que se mostrasse. Isso é expor-se. Isso é revelar o que ninguém quer saber. Isso é narcisista. Isso é exibicionismo.
Sinéad O’Connor foi vítima da grande mentira do nosso tempo: que é altura de nos confessarmos, de mostrarmos o sofrimento, de pedir ajuda a quem está bem.
Ela mostrou e pediu. E voltou a mostrar e a pedir. Mas as pessoas cansaram-se de ajudá-la. E depois cansaram-se de ouvi-la, tal como o público musical desiste num só segundo de um artista que adorava, só porque ouviu uma música de que não gostou.
E passa alegremente para a próxima Sinéad.
Nós só queremos saber do boneco. E o boneco era uma rapariga muito nova, tão bonita como a voz, de olhos enormes e cabeça rapada, a chorar enquanto canta Nothing Compares 2 U.
A irreverência esconde quase sempre um desejo de reverência, tal como a desobediência pode revelar uma vontade louca de obedecer.
Os voos e mergulhos religiosos de Sinéad O’Connor são mais do que o reflexo do sobe-e-desce do cérebro bipolar: são saltos de esperança, dados para sair por cima da profundidade das desilusões e dos desesperos.
A lição que Sinéad O’Connor deixou é clara: não te mostres, não sejas sincero, não julgues que quer saber de ti quem gosta de ti mas não te conhece.
As pessoas usam a música para fugir à realidade.
Da realidade e da solidão sem música está toda a gente farta: faz uma música ou cala-te.
(Transcrito do PÚBLICO)