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Sexo e verdade (Por António Guerreiro)

Como a questão do “verdadeiro sexo” se coloca obsessivamente e não só nos Jogos Olímpicos

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Imagem mostra a atleta Imane Khelif, de uniforme vermelho, sentada nas cordas do ringue de boxe nas Olimpíadas de Paris - Metrópoles
1 de 1 Imagem mostra a atleta Imane Khelif, de uniforme vermelho, sentada nas cordas do ringue de boxe nas Olimpíadas de Paris - Metrópoles - Foto: GettyImages

Por estes dias, uma olímpica discussão biopolítica transpôs as portas dos estádios e correu mundo: estava em causa saber qual é o verdadeiro sexo da pugilista argelina Imane Khelif.

O Comité Olímpico Internacional assegurou que se trata inequivocamente de uma mulher. Mas isso não impediu que se erguesse um coro planetário lançando a forte suspeita – muitas vezes transformada em “certeza” – de que alguns índices corporais denunciam que ela dissimula o seu verdadeiro sexo e que se aproveita das fantasmagorias da natureza ou das técnicas modernas de transição de género.

Na primeira hipótese, ela seria hermafrodita (no actual vocabulário médico-legal: intersexo); no segundo caso, seria uma mulher “trans”.

Em ambos os casos ela estaria a enganar-nos a todos e seria a prova de que, por mais que uma cultura identitária tenha vindo baralhar todo o antigo esquema da diferença sexual, há um “verdadeiro” sexo (irredutível, inalienável), em relação ao qual todos os desvios são uma “mentira”. E aqui reside o interesse desta discussão que ganhou o aspecto da mais universal operação de bullying exercido sobre uma pessoa.

Esta questão do “verdadeiro sexo” foi tratada por Michel Foucault num texto de 1980 que serviu de prefácio à edição americana de Herculine Barbin. dite Alexina B., publicado em França em 1978, juntamente com um dossier do caso médico-legal desta hermafrodita, apresentado pelo filósofo francês. Vale a pena ler esse texto (incluído no volume IV dos Dits et écrits), tendo presente a discussão em torno da identidade sexual da pugilista argelina.

Quando Foucault desenterrou o testemunho autobiográfico desta rapariga nascida numa pequena vila de província, no seio de uma família pobre, estávamos ainda longe das discussões sobre as teorias do género. Esse testemunho foi editado pela primeira vez, em 1874, por Ambroise Tardieu (num livro sobre questões médico-legais da identidade), que o recebeu sob a forma de manuscrito das mãos do dr. Régnier, o médico que tinha passado a certidão de óbito e feito a autópsia de Herculine. O seu testemunho foi escrito pouco antes do suicídio, aos 30 anos, depois de ter sido obrigada, por um procedimento judicial, a mudar de sexo legal (e de nome, passando a ser Abel).

Herculine foi educada num convento, onde descobriu a sua atracção pelas jovens freiras, os prazeres eróticos proporcionados por gestos e carícias que passavam por manifestações de carinho e inocente intimidade. Quando depois entrou num internato de raparigas como professora, as suas pulsões sexuais tornaram-se mais ousadas e conscientes, tendo beneficiado dessa condição de uma não-identidade: “Nem mulher que ama as mulheres nem homem escondido entre as mulheres”, escreve Foucault nesse prefácio sobre “o verdadeiro sexo”.

E começa por perguntar: “Temos verdadeiramente necessidade de um verdadeiro sexo?” A sociedade ocidental moderna mostra, até com alguma obstinação, que precisamos. Mas, fazendo uma arqueologia desta necessidade, Foucault conclui que nem sempre foi assim. Prova disso é a alteração de atitude perante os hermafroditas, a partir do século XVIII, devido às novas teorias biológicas da sexualidade e às formas de controlo nos Estados modernos.

Desde a Idade Média que eram classificados como hermafroditas os indivíduos em que os dois sexos se justapunham. No momento do baptismo, o pai ou o padrinho fixavam à criança o sexo que iria vigorar, aquele que parecia manifestar-se anatomicamente com mais força. Chegado à idade adulta, o hermafrodita podia decidir ficar com a identidade sexual que lhe tinha sido atribuída ou alterá-la. A única condição era que ficava obrigado a manter inalterável, até ao fim da vida, a sua escolha.

As pesadas punições e as representações maléficas a que os hermafroditas estavam sujeitos não era por causa da sua condição de hermafroditas, mas porque transgrediam, para proveito próprio, essa regra da manutenção da identidade. No seu estudo arqueológico, Foucault mostra que essa livre escolha deixou de existir e todo o indivíduo é identificado pela sua “sexualidade primeira, profunda, determinada e determinante”. Perante um hermafrodita, o saber médico tem de solucionar a ambiguidade dos dois sexos que se justapõem, dizer qual é a “verdade” que se esconde naquela natureza confusa e enganadora. Assim, em rigor, conclui Foucault, todos os hermafroditas não passam de pseudo-hermafroditas.

A hipótese amplamente difundida, apesar de todos os desmentidos, de que Imane Khelif é uma pseudomulher mostra como a questão do “verdadeiro sexo” se coloca hoje obsessivamente e não apenas nos Jogos Olímpicos. Contesta-se a ideia de género porque se considera que ela veio trair essa verdade.

(Transcrito do PÚBLICO)

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