Seu santo nome em vão (por Mary Zaidan)
Bolsonaro abusa de Deus, mas até entre evangélicos sua vantagem é pouca
atualizado
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Dizem que Deus é brasileiro. Talvez dissidente, diante do farto uso de seu nome em vão. Está no preâmbulo da Constituição de 1988 – “sob a proteção de Deus” – , a mesma que define o Brasil como estado laico. Abre as sessões dos parlamentos e decora com o crucifixo de seu filho milhares de repartições públicas país afora. Mas nunca antes Ele foi tão explorado como nos tempos de Jair Bolsonaro. Do slogan do presidente às participações cada vez mais frequentes em cultos de campanha, em pleno horário de trabalho, de preferência associados a motociatas, o “mito” não se envergonha de abusar do Senhor. Algo, decididamente, nada divino.
Planejado, o movimento de campanha envolvendo evangélicos é contínuo. Na sexta-feira, Bolsonaro usou a 43ª Assembleia Geral das Assembleias de Deus do Ministério de Madureira para voltar a Juiz de Fora, 1.408 dias depois do atentado que sofreu na cidade. Procurou sem sucesso desviar o foco do assassinato brutal do tesoureiro do PT de Foz de Iguaçu, que comemorava seu aniversário quando foi morto a tiros por um bolsonarista. Visitou também a Santa Casa que prestou a ele o primeiro atendimento após a facada. Antes, em clima de euforia, nada parecido com a comoção ensaiada que apresentou mais tarde, havia curtido uma motociata com apoiadores. Tudo em dia de batente, custeado pelos impostos dos brasileiros.
E nada acontece, nem mesmo um puxãozinho de orelha. Assim como fez com o Senado e a Câmara no episódio de aprovação da PEC kamikaze, no qual usou os pobres para constranger os parlamentares, Bolsonaro desafia a Justiça com ameaças golpistas, inibindo iniciativas de processos, multas e de impedimento de sua candidatura por desrespeito à legislação eleitoral. Instiga o temor da ruptura democrática para minar a democracia.
De meados de abril para cá, essa foi a 15ª participação de Bolsonaro em cerimônias evangélicas, sete delas em dia de semana, sem qualquer preocupação de casar a agenda religiosa-eleitoral com compromissos formais de governo.
Além da presença, que confere prestígio aos eventos e aos pastores que os lideram, Bolsonaro tem feito o diabo para garantir o apoio irrestrito de representações evangélicas. Anulou dívidas e promulgou isenções de impostos, em um movimento de engana-bobo grotesco – primeiro vetou o perdão de mais de R$ 1 bilhão devido pelas igrejas e depois fez de tudo para que o Congresso derrubasse o veto. Nomeou um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF e abriu as portas do Palácio do Planalto para pastores lobistas flagrados em relações nada republicanas entre o Ministério da Educação e prefeituras. Mais: no dia 12, editou um decreto que modifica o Código Nacional de Telecomunicações, permitindo que emissoras de rádio e televisão possam vender até 100% de seu tempo, antiga reivindicação das igrejas. Pai como este, nem nos céus.
Bolsonaro é originalmente católico, evangélico por influência da mulher Michelle e conveniência eleitoral. Batizou-se no Rio Jordão e passou a ter como queridinho o pastor Silas Malafaia, que parece atrelar a fidelidade não a Deus, mas ao bolso. Em 2012 apoiou o candidato José Serra do PSDB, mesmo partido do presidente Fernando Henrique Cardoso, que Bolsonaro sugeriu ser “fuzilado” por cometer o crime de privatizar estatais. Agora, o mesmo Bolsonaro diz querer privatizar a Petrobras para baixar o preço dos combustíveis, como se o investidor privado fosse abrir mão de políticas de mercado. Algo de fazer até Deus gargalhar.
Para agradar aos evangélicos e à turba conservadora, nas pautas comportamentais Bolsonaro também deu uma guinada incrível: afirma ser radicalmente contra o aborto. Bem diferente de 2000, quando assegurava que essa deveria ser “uma decisão do casal”. Ou seja, suas crenças são de mentira, do jeito que o capeta gosta.
Apesar da ação intensa para assegurar a preferência dos evangélicos – único público em que Bolsonaro detém intenção de votos superior à do adversário Luiz Inácio Lula da Silva -, o embate continua duro. De acordo com o último Datafolha, entre os fiéis, Bolsonaro detém a preferência de 40%. Outros 35% optam por Lula.
Os números refletem um cenário que vai muito além da religiosidade. A maioria dos evangélicos é pobre e a maioria dos pobres rejeita Bolsonaro. São os dados que a campanha de reeleição do presidente tenta inverter com bondades temporárias – aumento no Auxílio Brasil, bolsa-gás, bolsa-caminhoneiro autônomo, troco para taxistas, caixas-d’água, tratores… – e com abuso sem limites da fé.
Mas há um consolo: Deus tudo vê.
Mary Zaidan é jornalista