Revolução cultural (Por Leonel Moura)
A gestão cultural, empresarial e política começa a sofrer a forte concorrência da inteligência das máquinas
atualizado
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A Inteligência Artificial (IA) está na moda. Mas não é uma moda. É uma revolução.
A IA generativa representa a emergência das máquinas criativas. Capaz de gerar textos, imagens, vídeos, arquitetura, e, em geral, qualquer componente criativa, mas igualmente com capacidade para organizar, gerir, tomar decisões e mesmo inovar em praticamente todas as áreas da atividade humana.
Nesta primeira fase tem um forte impacto na área cultural – porque, sendo extremamente criativa, está a substituir artistas e toda a espécie de criativos, não só gráficos e designers, mas nos mais inesperados campos. Veja-se o caso de Hollywood. Nos últimos dias, soubemos que os guionistas estão em risco de perder o emprego. A máquina faz melhor, mais rápido, mais barato. E não são os únicos. Certos setores da produção – marketing, efeitos especiais, distribuição – estão ameaçados. Mesmo os atores começam a ser substituídos por réplicas digitais. A indústria do cinema, tal como a conhecemos, morreu. Vem aí uma nova com menos participação humana, mas igualmente capaz de atrair multidões e encher o streaming com séries que vão do bom ao medíocre, como é habitual. A máquina é muito versátil.
Dir-se-á que este tipo de sobressalto já sucede desde a Revolução Industrial. Recentemente, os computadores, o digital, a Internet, a robótica, só para dar alguns exemplos, exterminaram milhões de empregos, mas depressa deram lugar à criação de muitos outros, por vezes até em número superior. Com a IA isso não vai acontecer. As novas profissões, nomeadamente os engenheiros prompt, não conseguirão substituir em quantidade os muitos criativos que vão ficar sem trabalho. Não se trata de trocar uma competência por uma nova. Trata-se de substituir uma multidão de humanos dispensáveis por máquinas que fazem tudo.
Neste contexto, mesmo a criação das novas profissões não é linear. Nos exemplos anteriores bastou dar formação, sobretudo técnica, para que um trabalhador sem qualificação pudesse assumir uma nova função. Desta vez, a formação técnica não basta. Pelo contrário, poderá mesmo ser nefasta.
Na nova IA, a colaboração entre o humano e a máquina não se passa só ao nível das instruções técnicas, mas é determinante quanto às instruções criativas. A máquina é parcimoniosa. Se se pede uma coisa banal, ela devolve uma coisa banal. Mas se se quiser algo bastante criativo, é preciso que o prompt seja, em si mesmo, bastante criativo – ou seja, o engenheiro prompt tem de ser singular para conseguir tirar o melhor proveito da máquina. Ora, este nível de criatividade aprende-se, mas não se ensina. Na verdade, estamos aqui mais próximos de um artista do que de um técnico.
Não existe, de momento, nenhuma entidade capaz de criar engenheiros prompt. A Internet está cheia de cursos, mas são ilusórios. A maioria visa simplesmente fazer algum dinheiro com o desespero. É certo que alguns ambientes são mais propícios ao desenvolvimento do talento, mas são raros no ensino, mesmo no informal.
Como disse, o talento aprende-se, mas não se ensina.
Mais do que conhecimentos técnicos, um qualificado engenheiro prompt tem de ser imaginativo, ter experiência de vida, ser irreverente, ousado, extravagante. Não existem muitos. Tal como estamos organizados, em academias que não favorecem a diferença mas a repetição, o talento é residual.
A falta de operadores qualificados para tirar o melhor proveito da IA é, no entanto, o menor dos problemas.
Estamos a assistir a uma segunda fase do desenvolvimento da IA generativa. Quando ela passa a gerir a sua própria evolução, ou seja, quando a IA cria mais IA.
A IA aprende e evolui a partir de bases de dados provenientes da cultura humana, como não podia deixar de ser. Não há outras. Mas em breve teremos uma IA alimentada pelas suas próprias criações, a ponto de se tornar independente das nossas bases de dados e, em última instância, conseguir dispensar o prompt humano. Uma cultura IA pode estar a nascer. Assustador? Certamente – porque desconhecemos as consequências.
Previsível no curto prazo é o desenvolvimento de uma IA individualizada, liberta da vontade humana. Imagino que surgirão artistas e outros criativos IA com uma personalidade própria. Da mesma forma que hoje, nas artes, reconhecemos certos estilos, o estilo Picasso ou o estilo Van Gogh, em breve teremos variados estilos IA, o A, o B, o XYZ. Com nome próprio e talvez até um reconhecido “rosto” virtual. Serão pintores IA, escritores IA, músicos IA, atores IA que farão exposições nos museus, darão concertos e serão capa nas revistas mundanas. Já nem falo da presença incontornável nas redes sociais.
De momento, andamos fascinados com chats, bonecos e realidades virtuais, mas o que se desenha e marcará a vitória das máquinas sobre os humanos será a emergência dos gestores IA – nos vários domínios, na cultura, nas empresas, na política, realidade que está em curso. No ano passado, uma empresa chinesa nomeou como CEO uma IA de seu nome Tang-Yu. Gere projetos, avalia funcionários, define estratégias. Sob a sua gestão a empresa cresceu 10% num ano. Curioso que Jack Ma, o criador do Alibaba, sem grandes conhecimentos tecnológicos, diga-se, mas com visão, afirmou em 2017 que em breve uma IA vai ser capa da revista Time como melhor gestor do ano. E vai mesmo.
Em conclusão: a cultura humana está em vias de ser substituída por uma cultura IA. A gestão cultural, empresarial e política começa a sofrer a forte concorrência da inteligência das máquinas. O pior que se pode fazer é pensar que isto é uma moda que passa. Não vai passar. Vai acelerar-se.
(Transcrito do PÚBLICO)