Reforma e contrarreforma (por André Gustavo Stumpf)
A contrarreforma brasileira restabeleceu a ordem natural das coisas no Brasil tradicionalista. O status quo ante voltou a vigorar
atualizado
Compartilhar notícia
No 31 de outubro de 1517, o monge católico Martinho Lutero pregou suas noventa e cinco teses na porta de igreja do castelo de Wittenberg, véspera do Dia de Todos os Santos, detonando uma revolução religiosa que fraturou a cristandade ocidental. Os desafios de Lutero em poucos meses foram conhecidos em toda a Alemanha e se espalharam pela Europa. Ele traduziu a Bíblia para o idioma alemão. O conteúdo do livro sagrado deixou de ser conhecimento exclusivo daqueles que eram versados em latim, ou seja, os padres.
Os ataques verbais de Lutero incendiaram a Europa quando Portugal navegava com vento favorável nos descobrimentos e já tinha colocado sua bandeira no Brasil, na África e na Índia. A expansão portuguesa foi realizada de braços dados com a Igreja Católica. No primeiro momento, a radicalização religiosa na Europa se voltou contra os judeus. Boa parte deles viajou com navegantes que bateram nas costas do Novo Mundo. A primeira sinagoga construída nas Américas foi erigida em Recife, Zur Israel, Pedra de Israel, por judeus sefarditas fugidos da península ibérica. Os protestantes, seguidores das ideias de Lutero, migraram para o norte.
Os pioneiros fundaram as treze colônias ao longo da costa atlântica. As duas primeiras foram Virginia, em 1607, e New Hampshire, em 1623. Foram colonizadas por empresas inglesas que trataram de levar para novo mundo o excesso de população que começava a incomodar a Inglaterra. Essa diferença de religiões preside até hoje as relações nos países do continente ao sul e ao norte. A relação com o dinheiro é fundamental. Para os católicos acumular é pecado porque os ricos não vão entrar no reino dos céus. Para os protestantes ser rico é glorioso porque significa a possibilidade de criar empregos e fazer generosas doações em favor da comunidade.
A resposta a esse terremoto político-religioso foi a contrarreforma, movimento de reestruturação da Igreja Católica que culminou em 1545 com o Concílio de Trento. Neste encontro foi decidido a criação de seminários para aqueles que desejassem seguir a vida sacerdotal e a proibição da venda de indulgências. O Tribunal do Santo Ofício foi reativado para julgar hereges. Surgiu o Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos), que consistia na lista de livros considerados imorais ou contrários a fé pela Igreja.
A Companhia de Jesus foi fundamental dentro da Reforma Católica, pois através do ensino e das missões, divulgaram a fé católica no novo mundo. Os jesuítas estão largamente presentes na história do Brasil até serem expulsos pelo Marques de Pombal (1759) por não obedecer às normas do governo português. Eles tinham seus próprios ordenamentos. Catequizaram índios, os aproveitaram como mão de obra gratuita e conquistaram área enormes no território brasileiro. Em resumo, os Estados Unidos e o Canadá são filhos da reforma protestante. O Brasil e seus vizinhos na América Latina são filhos da contrarreforma católica.
Os conceitos são diferentes e até antagônicos na organização da sociedade. O juiz Sérgio Moro trabalhou na sua cruzada contra a corrupção com auxílio, ostensivo ou não, de procuradores norte-americanos, que vasculharam as entranhas da política nacional. Revelaram as fantásticas roubalheiras ocorridas na Petrobras e nas obras patrocinadas pelo governo federal. Foram denúncias sucessivas que destruíram reputações e demoliram empresas.
A contrarreforma brasileira restabeleceu a ordem natural das coisas no Brasil tradicionalista. O status quo ante voltou a vigorar. Os juristas, inclusive os da Supremo Corte, subitamente descobriram vícios processuais e iniciaram o processo de reformar aquilo que eles mesmos decidiram. O Tribunal de Contas da União assumiu o papel da Inquisição. Puniu os hereges, no caso o ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol a ressarcir, junto com o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot e o ex-procurador-chefe do Ministério Público no Paraná, João Vicente Beraldo Romão a quantia de R$ 2.831.808,17. Os gastos relativos a pagamento de diárias e passagens a integrantes da operação foram classificados como “ilegítimos e antieconômicos”.
A Lava Jato foi a maior operação já deflagrada no país contra a corrupção. Em sete anos, entre 2014 e 2021, levou à prisão ou a condenação doleiros, empreiteiros, lobistas e políticos. A contrarreforma brasileira foi objetiva. Passou a livrar políticos notoriamente envolvidos em desvios de dinheiro, liberar empresários que pagaram propina para se beneficiar e atenuar falhas de funcionários que foram condizentes com a anarquia financeira. Há dinheiro no Brasil. Não há justificativa para o país ter 30 milhões de pessoas com fome. Só a corrupção explica. Não existe pecado ao sul do Equador.
André Gustavo Stumpf, jornalista (andregustavo10@terra.com.br)